
Ouça este conteúdo
Em um país de tradições musicais ricas, a trajetória da cultura brasileira, especialmente nas últimas décadas, suscita debates sérios sobre evolução ou declínio.
De Heitor Villa-Lobos, com suas composições complexas, chegamos a expressões como o funk de Oruam ou “Caneta Azul”, de Manoel Gomes, que viralizam e se tornam hits populares com uma facilidade impressionante. O que ocorreu para que a cultura mais elaborada cedesse espaço a um reducionismo sensível?
Villa-Lobos sintetizou cantochões indígenas, modinhas, chorinhos e referências europeias em ciclos como os Choros e as Bachianas Brasileiras, elevando o popular à altura do erudito. Hoje, no entanto, algoritmos e plataformas premiam o que é mais simples, repetitivo e chocante, sinalizando uma regressão dos critérios estéticos.
Trata-se de um ambiente em que o ruído imediato vale mais do que a forma trabalhada, e no qual a atenção do público é disputada segundo a lógica do choque e da viralização.
Os filósofos Theodor Adorno e Max Horkheimer, expoentes da Escola de Frankfurt, no ensaio sobre a indústria cultural em Dialética do Esclarecimento (1947), observaram que a cultura de massas tende a padronizar gostos, converter obras em mercadorias seriadas e reduzir a arte a entretenimento ligeiro.
Porém, ao atribuir esse processo quase exclusivamente à lógica do capital e da técnica, deixam na penumbra a responsabilidade da própria academia, que, ao abandonar a transmissão dos clássicos e relativizar critérios de verdade, beleza e bem, preparou o terreno para que qualquer produto se tornasse culturalmente equivalente.
"Acesso ao que não presta"
Sir Roger Scruton, em Música como Arte (2018), ao tratar da música contemporânea, observa que já não há garantia de que uma nova obra será reconhecida como tal pelo ouvido musical educado, nem de que possa ser ouvida como continuidade da tradição sinfônica.
Para o filósofo britânico, ocorreu uma “ruptura radical”, e uma das consequências é que muitas obras recentes parecem melodicamente empobrecidas, ou mesmo sem qualquer melodia, apoiando-se em experimentos acústicos para preencher o vazio deixado por ela. Essa crítica vale tanto para formas de vanguarda herméticas quanto para boa parte da música popular industrializada.
Essa percepção encontra eco no documentário Gal: Do Tropicalismo aos Dias de Hoje, dirigido por Marcello Bartz e Carlos Ebert. No filme, Tom Zé recorda que sua tia Wanda, ao criticar músicas do tropicalismo que ele próprio ajudara a fundar, dizia que aquelas composições tinham apenas ritmo e não constituíam verdadeira música.
O artista comenta: “Se naquele tempo Tia Wanda já achava que aquilo não era melodia, imagine agora”. Esse “agora” remete a 2006, ano de produção do filme.
No mesmo documentário, o jornalista Tárik de Souza recorda o projeto Aquarius, promovido pela Rede Globo, que oferecia grandes concertos gratuitos de música erudita, sempre lotados, e questiona a tese de que o povo rejeita esse repertório.
“Não tem muito fundamento isso de que o povo não tem condições de assimilar a música erudita”, afirma, apontando que o problema está na ausência de oferta de conteúdo mais elaborado pela mídia, o que leva o público a pensar “que só existe aquela coisa rasinha que ele vê todo dia na televisão”.
Vinte anos após a produção do documentário, o diretor Marcello Bartz reforça, em entrevista à Gazeta do Povo, um diagnóstico semelhante. “O povo só tem acesso ao que não presta. Se der acesso à música erudita, o povo gosta. Antigamente havia vários shows no Ibirapuera de música erudita e lotava, e o público era gente super simples. O problema é que não é ofertado nada que preste pro povo”.
Ele reconhece que há boa música sendo produzida hoje, mas ressalta que permanece “aprisionada em uma bolha”.
Chiquinha, Ariano, Elomar
Mas nem tudo está perdido e há uma luz no fim do túnel, um oásis no deserto. Sempre houve. A história brasileira oferece exemplos robustos de resistência.
Chiquinha Gonzaga exemplifica a fusão orgânica entre o erudito e o popular. Abolicionista e pioneira na defesa dos direitos autorais, ela elevou ritmos afro-brasileiros a composições sofisticadas, fundando uma música popular brasileira sem banalização e mesclando salões europeus com o Carnaval. Sua obra mostra que o diálogo com o povo não exige empobrecimento da linguagem musical.
Vigor semelhante se encontra no Movimento Armorial, idealizado por Ariano Suassuna em 1970. O movimento propõe uma arte erudita inspirada nas raízes nordestinas, integrando literatura, música e dança para resgatar a herança lusa, ibérica e folclórica.
Suassuna combateu o efêmero e promoveu uma identidade brasileira perene, tanto na literatura e no teatro quanto em concertos que aproximam o universo medieval ibérico do sertanejo. Nessa perspectiva, a cultura não é um laboratório de experimentos ideológicos, mas um patrimônio a ser protegido e continuado.
Hoje, Elomar Figueira Mello, aos 88 anos, encarna essa resistência viva. Obras como Das Barrancas do Rio Gavião (1973) evocam um sertão de feição medieval ibérica em composições poéticas e modais, em oposição à tendência midiática que esmaga tradições.
Elomar não é relíquia; é prova de que uma cultura erudita popular ainda persiste e desafia a superficialidade contemporânea, mantendo um público fiel que busca nessa música uma experiência de transcendência e memória.
É preciso procurar
Há também artistas populares que buscam primazia técnica em diferentes estilos: a viola elaborada de Almir Sater, a voz trabalhada de Oswaldo Montenegro ou os riffs de guitarra de bandas como Metallica demonstram que virtuosismo e apelo de massa podem conviver.
O problema é que, para ouvi-los, é preciso procurá-los. Eles raramente aparecem na primeira página das plataformas de streaming e já não são presença constante na televisão aberta. O circuito de alto nível continua ativo, mas foi empurrado para nichos.
Existe, portanto, uma música popular brasileira que não coincide com a sigla MPB consagrada pela academia, mas que é de fato popular, tonal, melódica e tecnicamente elaborada. A questão é entender por que a música mais empobrecida, tecnicamente rasa, se dissemina com tanta força em redes sociais, serviços de streaming e mídia de massa, em detrimento de bons artistas.
Aqui, a crítica de Scruton à “indústria do ruído” ganha força: para ele, esse universo sonoro conquistou até conservatórios e departamentos universitários, marginalizando a harmonia tonal e promovendo teorias e escolas de composição que exercem uma vigilância permanente sobre a cultura.
Scruton atribui boa parte da decadência da cultura musical ao ataque de pensadores como o próprio Adorno à tonalidade. A crítica adorniana à música tonal, apoiada na ideia de um espírito do tempo que exigiria a superação da “ordem burguesa”, integrou, segundo o pensador inglês, um processo sistemático de deslegitimação da cultura burguesa, que tinha a boa música como um de seus símbolos.
Quando a universidade abraça esse tipo de raciocínio e abandona a defesa do cânone, contribui para o vazio em que qualquer som pode ser apresentado como obra relevante.
Ao fim, podemos ainda cantar com Rita Lee: “Ai, ai meu Deus! O que foi que aconteceu com a música popular brasileira?”. A resposta sugerida por esse percurso é que a decadência não é apenas produto da indústria, mas consequência de uma academia que abdicou de formar o gosto, abandonou o belo e relativizou a própria ideia de qualidade.
A persistência de criadores que mantêm viva a essência sofisticada e enraizada da nossa música indica, porém, que a reversão é possível: depende de ampliar o acesso a esses bens, valorizar essas vozes e recuperar a confiança de que certas obras elevam mais do que outras, porque dizem algo mais alto e verdadeiro sobre a alma de cada um.