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A BBC de Londres está em crise. E não se trata de um problema menor. É uma turbulência que atinge um dos maiores símbolos da informação no mundo. O escândalo que provocou a queda do diretor-geral Tim Davie não pode ser reduzido a um simples deslize editorial ou a um erro de edição. A manipulação de uma fala do presidente Donald Trump, em um documentário, para fazê-la parecer um apelo direto à violência, expôs uma chaga que há anos corrói o jornalismo moderno: a tentação, cada vez mais recorrente, de submeter os fatos às narrativas ideológicas.
A BBC sempre foi referência global de rigor e equilíbrio. Por décadas, simbolizou o padrão de ouro da cobertura factual. Quando um colosso desse porte vacila, o impacto é devastador. E o episódio é sintomático: revela a expansão inquietante de um jornalismo militante, que deixa de registrar acontecimentos para promover causas. Um jornalismo que abandona a narrativa fiel dos fatos e se converte em instrumento de disputa cultural. Troca o relato pela tese, os dados pela emoção, a verificação pela militância. O repórter, que deveria ser um observador atento, sereno e imparcial, transforma-se em pregador de convicções pessoais, como tantas vezes tenho escrito neste espaço opinativo.
Esse desvio de rota tem consequências graves. A primeira delas é a erosão da credibilidade, capital mais precioso da imprensa. Sem credibilidade, uma emissora, um jornal, uma revista ou um portal se tornam apenas mais uma voz no tumulto digital. A informação passa a disputar espaço com boatos, memes, vídeos manipulados e paixões instantâneas. Perde-se a autoridade moral para exigir transparência de governos, investigar desvios e fiscalizar o poder. A imprensa que abdica da verdade factual torna-se incapaz de cumprir sua missão republicana.
O jornalismo que entrega versões em lugar de fatos subestima a inteligência do leitor, desmoraliza o ofício e compromete a democracia
A crise da BBC deveria servir como um convite – ou melhor, um alerta forte – para uma autocrítica profunda de todos nós que trabalhamos com informação. Não se trata de apontar o dedo para Londres, mas de reconhecer que erros semelhantes, em maior ou menor grau, se multiplicam mundo afora. O jornalismo, quando capturado por visões de mundo rígidas, deixa de ser ponte e se transforma em muralha. Ao privilegiar narrativas, deixa de explicar e passa a catequizar. E o público percebe. O público reage. O público se afasta.
O consumidor de notícias no século 21 está saturado de manipulações e de versões previamente embaladas. Ele quer – e tem todo o direito de receber – informação ética, transparente e de qualidade. Quer dados, contexto, pluralidade de fontes, precisão. Quer ser tratado com respeito, não como objeto de engenharia social. A função da imprensa não é educar politicamente a sociedade, mas informá-la com rigor, para que ela própria tire suas conclusões. O jornalismo que entrega versões em lugar de fatos subestima a inteligência do leitor, desmoraliza o ofício e compromete a democracia.
Por isso, é urgente resgatar o jornalismo factual, aquele que coloca os acontecimentos acima das paixões políticas e ideológicas. O jornalismo que pratica o velho – e sempre atual – “ouvir os dois lados”; que separa nitidamente notícia de opinião; que assume seus erros com humildade e corrige com transparência. Jornalismo que não faz contrabando opinativo na informação. Não se trata de defender uma neutralidade impossível – porque ninguém é neutro –, mas de defender um jornalismo consciente de suas limitações e, por isso mesmo, fiel à verdade possível dos fatos. O jornalismo objetivo não é o jornalismo asséptico, mas o jornalismo honesto, que não teme a realidade, mesmo quando ela é incômoda.
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A BBC enfrentará suas dores internas, fará apurações, revisará procedimentos, como já fez em seus 103 anos de história. Tem instituições sólidas para isso. Mas o episódio deve ecoar além das fronteiras britânicas. Deve chegar às redações que, por convicção ou conveniência, vão cedendo ao perigoso atalho das narrativas. Deve alcançar jovens jornalistas formados mais em ativismo do que em apuração. Deve servir de alerta para empresas que confundem engajamento com relevância.
A imprensa só cumpre sua função democrática quando se compromete com a verdade e não com a conveniência; com a informação e não com a propaganda; com o leitor e não com a causa do momento. O jornalismo factual pode até parecer modesto, mas é o único que preserva a credibilidade e sustenta a democracia. O resto é retórica disfarçada de reportagem.
A crise da BBC é, na verdade, um espelho. E o que ele reflete é simples e decisivo: sem verdade, não há jornalismo. Sem jornalismo, não há confiança. E sem confiança, não há democracia saudável. O episódio não deve ser minimizado. Deve ser compreendido como um chamado urgente para o retorno ao essencial: rigor, honestidade intelectual e compromisso inegociável com os fatos. Porque, no fim das contas, é isso que salva o jornalismo. É isso que fortalece a democracia. E é isso que o público – cansado de manipulações – espera de nós.
O jornalismo precisa ser um farol que ilumina as névoas da manipulação. Precisa voltar a ser um porto seguro.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
