A forma como tratamos a liberdade religiosa, quando ela deixa de ser ornamento e volta a ser convicção, diz muito sobre a segurança da nossa democracia. (Foto: Imagem criada usando ChatGPT/ Gazeta do Povo)

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Há algo de particular neste intervalo entre o Natal e o Ano Novo. O país desacelera, as disputas parecem suspensas por alguns dias e, quase sem perceber, as pessoas voltam a fazer perguntas simples e profundas. O que está acontecendo com o Brasil? Que tipo de país estamos nos tornando? E o que nos espera quando o calendário virar e um novo ano eleitoral começar a tensionar tudo outra vez?

E, nesse clima e neste momento, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos acaba de divulgar um relatório especial sobre liberdade de expressão no Brasil. Um documento que não traz slogans nem respostas fáceis. Entende haver riscos à democracia (eles partem da premissa que o 8/1 foi uma tentativa de golpe – não existe neutralidade em lugar nenhum), alerta para excessos do Estado na apuração e punição (uma vitória mínima do relatório em prol de um olhar mais razoável), e reafirma que restrições só se legitimam quando passam por critérios rigorosos e objetivos (aqui foi um ganho).

Até aqui, nada de surpreendente, considerando o histórico da Comissão e o seu viés institucional, concentrado há décadas na imprensa, no discurso político e na circulação de informações. O desconforto começa em outro ponto: o relatório quase não toca na expressão religiosa, justamente uma das formas mais concretas, cotidianas e sensíveis de manifestação da liberdade. 

Há avanços importantes no alerta contra categorias vagas e aplicações erráticas do Direito, e isso merece reconhecimento. Mas o silêncio sobre a fé revela uma zona de conforto metodológico: tratar a liberdade de expressão como categoria homogênea, evitando um campo que exige mais rigor conceitual e menos atalhos. A expressão religiosa não é apenas opinião ou narrativa; envolve convicções estruturantes, linguagem moral e práticas comunitárias que, no Brasil, costumam ser as primeiras a sofrer enquadramentos seletivos. 

Não é uma crise jurídica isolada, mas uma crise de coerência institucional. E crise de coerência vira crise de confiança

Isso importa mais do que parece. Não é debate teológico, nem pedido de privilégio. É vida real. É o que pode ser dito no trabalho, na escola, no conselho tutelar, na universidade, nas redes sociais, no espaço público. A fé não aparece apenas nos templos; ela se manifesta em palavras, escolhas morais, críticas e convicções. E é exatamente aí que começa o desconforto institucional. A religião no espaço público, afinal, é um termômetro muito sensível à estabilidade democrática. 

A interpretação dominante sobre liberdade de expressão tornou-se, nos últimos anos, confortável. Confortável porque opera em terreno conhecido: imprensa, política, informação e desinformação. Há vocabulário estabilizado, consensos mínimos, soluções abstratas. O problema é que essa mesma lente, quando aplicada à liberdade religiosa, costuma funcionar mal. Não por malícia, mas parece ser uma acídia intelectual. Religião vira “opinião”, fé vira “narrativa”, doutrina vira “discurso”. Tudo é achatado para caber na mesma categoria genérica, como se a religião fosse apenas mais uma preferência subjetiva e privada.

Essa simplificação evita o esforço de compreender o que a liberdade religiosa protege. Não apenas o direito de falar, mas o direito de crer, viver e expressar convicções que estruturam a identidade da pessoa, inclusive quando essas convicções entram em tensão com o consenso do momento. A religião não é só conteúdo; é forma de vida. E formas de vida não se regulam com a mesma régua usada para moderar debates em rede social.

Quando esse esforço metodológico não é feito, surgem distorções previsíveis. Linguagem moral vira suspeita. Convicção vira radicalismo. Exclusividade teológica vira intolerância presumida. Resolve-se tudo com rótulos amplos, sem análise contextual séria. Em nome da proteção da democracia, empobrece-se o próprio pluralismo que se diz defender. Passa-se a tolerar apenas convicções fracas, desde que não disputem sentido nem formem consciência.

Aqui, liberdade religiosa, laicidade e democracia se encontram. Não são três temas distintos, mas três faces da mesma pergunta: como uma sociedade convive com convicções profundas sem transformar o Estado em árbitro moral da vida comum? A laicidade, no modelo brasileiro, não é hostilidade à fé nem neutralização do espaço público. É separação institucional, não amputação cultural. Quando esse equilíbrio se perde, o Estado passa a tratar a religião como ameaça a ser administrada.

O fim de 2025 revela sinais trocados. Celebra-se a religião como cultura e patrimônio; desconfia-se da religião como convicção pública. Quer-se o voto religioso; teme-se a influência religiosa. Aceita-se o cidadão de fé, desde que ele se comporte como se não tivesse fé. Não é uma crise jurídica isolada, mas uma crise de coerência institucional. E crise de coerência vira crise de confiança.

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Há também uma camada mais profunda, civilizacional. As grandes experiências de liberdade no Ocidente não nasceram da tentativa de eliminar convicções fortes do espaço público, mas de domesticá-las institucionalmente sem as anular. A laicidade surgiu como freio recíproco, não como nova ortodoxia. Sociedades inseguras, ao contrário, tendem a exigir que convicções sejam desidratadas para circular. A linguagem muda – hoje fala-se em neutralidade, proteção da democracia, combate ao ódio, mas o impulso é antigo.

Por isso, a discussão não é apenas sobre um relatório internacional, nem sobre decisões pontuais. É sobre método, coerência e limites. Democracias maduras preferem lidar com convicções fortes por meio de critérios claros, devido processo e proporcionalidade. As inseguras administram tensões pelo controle, pela exceção que se normaliza, pelo silêncio conveniente.

Talvez o erro, ao chegar ao fim deste ano, seja procurar respostas prontas. Elas aliviam, mas não esclarecem. O que se impõe é a lucidez, mesmo quando ela incomoda. A forma como tratamos a liberdade religiosa, quando ela deixa de ser ornamento e volta a ser convicção, diz muito sobre a segurança da nossa democracia.

O próximo ano exigirá escolhas. Não apenas nas urnas, mas na disposição de aceitar um espaço público com convicções vivas, e não apenas discursos inofensivos. Democracias seguras convivem com tensões. As inseguras preferem administrá-las. Entrar em 2026 atento a essa diferença talvez seja menos confortável – e mais necessário.