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Está em vigor na Austrália, desde o último dia 10, a primeira lei no mundo que proíbe a menores de 16 anos o acesso a redes sociais na internet. Com a medida, mais de um milhão de jovens foram barrados de utilizar plataformas como TikTok, Snapchat, Instagram, YouTube, Facebook, Reddit e outras.
A inédita investida australiana provoca discussões. Políticos, autoridades, especialistas e os próprios jovens afetados se dividem sobre a medida. Há quem considere urgente o controle do conteúdo para essa faixa de idade. Mas há, também, quem veja problemas na decisão e a considere autoritária e pouco eficaz.
Proteção da saúde mental e autonomia dos jovens
O principal argumento a favor da lei australiana é proteger a saúde mental de crianças e adolescentes. Há evidências científicas que associam o uso intensivo de redes sociais à ansiedade e depressão. O debate surge sobre até que ponto o estado pode intervir no desenvolvimento social e na autonomia dos jovens.
“Quando o estado intervém procura operar como um regulador diante daquilo que aponta para um risco. Em nossos consultórios, recolhemos há alguns anos os efeitos do que se nomeou ‘intoxicações eletrônicas’. Sobretudo na primeira infância, período em que cognição, comportamento e subjetividade, quando afetados, produzem consequências importantes no desenvolvimento das crianças”, avalia Simoni Cousseau, que é psicóloga e psicanalista especializada em crianças e adolescentes.
O governo da Austrália alega que tomou a decisão também para responder à resistência das plataformas em criar ambientes mais seguros e controláveis para jovens. A lei é considerada como uma forma de expor a dificuldade de autorregulação do setor.
“A Austrália está respondendo a uma questão global. Sabemos que está havendo danos sociais e, portanto, temos a responsabilidade como governo de responder aos apelos dos pais e também à campanha dos jovens que dizem: deixem-nos ser apenas crianças”, declarou Anthony Albanese, o primeiro-ministro australiano, em entrevista à CNN.
Impacto sobre grupos vulneráveis e minorias
Especialistas alertam que a proibição pode afetar desproporcionalmente jovens neurodivergentes ou socialmente isolados, que muitas vezes usam as redes para criar vínculos, buscar apoio e construir identidade. A discussão gira em torno do risco de a lei excluir justamente quem mais se beneficia do ambiente online.
Em janeiro deste ano, Marilyn Campbell, professora da faculdade de educação infantil e inclusiva da Universidade de Tecnologia de Queensland, na Austrália, escreveu um artigo em que alerta para possíveis problemas da medida.
“Jovens com autismo, aqueles que estão explorando sua identidade sexual e de gênero, entre outros, podem achar mais fácil socializar on-line do que presencialmente, porque, na internet, conseguem encontrar pessoas com as quais se identificam, que muitas vezes não vivem no mesmo bairro físico”, afirma Campbell, no texto publicado pela revista científica Nature
Embora especialistas reconheçam que a proibição pode gerar efeitos colaterais, há quem avalie que esses riscos não anulam o mérito da iniciativa, sobretudo diante da ausência de alternativas eficazes.
“A proibição não está livre de críticas. Eu penso que isso não invalida a medida. Mas as redes são arquitetadas para viciar. Não há como competir, seria muita ingenuidade. Portanto, entendo que são necessárias medidas que venham mais de cima, dos governos. É uma disputa desigual”, argumenta Priscila Noro, psicóloga, psiquiatra e psicomotricista, também especializada no atendimento de crianças e adolescentes.
Eficácia prática e riscos de clandestinidade digital
Um dos pontos mais críticos é a viabilidade da fiscalização da medida. Há dúvidas se a proibição será efetiva ou se apenas empurrará o uso das redes para a clandestinidade, com perfis falsos, menos mediação adulta e maior exposição a riscos.
“Do ponto de vista técnico, não existe hoje um método plenamente confiável de verificação de idade em redes sociais que seja, ao mesmo tempo, eficaz, difícil de burlar e compatível com a proteção da privacidade e dos dados pessoais. Jovens com conhecimento básico de tecnologia conseguem burlar essas barreiras”, analisa Gilberto Sudré, Perito em Computação Forense e especialista em Segurança da Informação.
Para que a proibição seja aplicada, o governo discute a adoção de mecanismos de verificação que levantam preocupações sobre privacidade e segurança da informação. Especialistas alertam que as soluções disponíveis podem gerar novos riscos.
“A exigência de documentos ou biometria implica coleta de dados sensíveis, criando novos riscos de vazamento. Soluções mais avançadas, como verificação por terceiros ou provas criptográficas de idade, ainda são complexas. Na prática, essas medidas tendem mais a dificultar parcialmente o acesso do que a garantir uma proteção efetiva”, complementa Sodré.
Importância dos pais
Independentemente da proibição adotada pela Austrália, especialistas são unânimes em apontar que nenhuma legislação substitui o papel dos pais na mediação do uso das redes sociais. A aproximação, o diálogo constante e o acompanhamento das experiências digitais dos filhos seguem sendo fatores decisivos para reduzir riscos
“Uma criação calorosa e acolhedora, em vez de decisões baseadas em poder e retirada de afeto, também torna as crianças mais propensas a ouvir as mensagens que os pais desejam transmitir sobre o uso saudável das redes sociais”, argumenta a professora Marilyn Campbell, no artigo para a revista Nature.
E o Brasil?
Em setembro deste ano, o Brasil passou a exigir que contas de usuários com até 16 anos estejam vinculadas obrigatoriamente ao perfil de um de seus responsáveis legais. No Brasil, a partir de março do ano que vem, contas de usuários com até 16 anos deverão estar vinculadas a um dos responsáveis legais. A medida faz parte do ECA Digital, em vigor desde setembro.
A pediatra Maíra Pieri Ribeiro elogia medida. “Nós tivemos um grande ganho com a proibição de celulares na escola. No começo, foi difícil para eles se readaptarem a brincar novamente, a ler, a fazer alguma atividade sem os celulares na mão. O que temos recolhido são relatos de adolescentes que substituíram a virtualidade pela realidade, o contato no lugar dos likes, a interação no lugar das curtidas e o vínculo no lugar dos seguidores”, comenta