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A Divina Comédia, uma das obras mais importantes da literatura mundial, é um poema épico com imagens fortes e uma metáfora intrincada sobre a vida humana e nossa jornada na direção da eternidade. É também um estudo de filosofia moral, talvez o mais profundo já escrito. Dante descreve o tecido de nosso caráter em detalhes, com a emoção e a sensibilidade característicos do gênero poético. Ele era um estudioso dedicado da obra de São Tomás de Aquino, e é em sua teologia do Bem e do Mal que se baseia para imaginar a estrutura do inferno, do purgatório e do paraíso.
Estamos num momento difícil da história brasileira, e por isso mesmo eu gostaria de convidar o leitor para meditar por alguns minutos nesse texto. Que tal, leitor, se, guiados pelas mãos de Dante, por seu conhecimento enciclopédico e teológico e sua imaginação de poeta, nós também fôssemos dar uma voltinha nas profundezas do inferno? Dante mesmo faz a jornada trilhando por lugares horrendos, enquanto vivo ainda, guiado por Virgílio – o autor da Eneida, poeta que ele admira e quer imitar. Nesse artigo, eu convido o leitor a descer ao mundo de Dante um pouquinho.
Eu sei que, assim como Dante hesitou, muitos dos leitores hesitaram ante a esse convite. Inferno – como assim? Essa doutrina c’est démodé, c’est passé, me dirão os mais sofisticados. A ideia de que a religião cristã tem que necessariamente incluir um lugar de punição eterna, hoje em dia, cora de vergonha o mais dedicado crente. Mas não tem como escapar: o inferno é, sim, uma doutrina que deriva da Bíblia. Tanto o Velho quanto o Novo Testamento falam sobre ele – Sheol (hebraico), Hades (grego), Geena (símbolo do castigo eterno), Infernum (latim eclesiástico). O inferno é parte da tradição cristã há milênios. Desde os pais da Igreja, muitos discorreram sobre a danação eterna: Tertuliano, Orígenes, Agostinho e, claro, o inspirador de Dante, São Tomás de Aquino.
Os atualizadores da Bíblia têm que convir que o esforço para apagar a perspectiva da danação corre o risco de deixar a mensagem de Cristo totalmente inócua, vazia de significado e substância. Se o mal não significa nada e todos, independentemente de como viveram, serão perdoados, o bem também não significa nada. Mas essa é uma longa discussão filosófica na qual não vale a pena entrar agora. Basta ao leitor, seja protestante ou católico, aceitar os dogmas da sua própria fé que o problema se resolve. Dogma é isso – uma doutrina que se aceita, muitas vezes sem que possamos compreendê-la inteiramente.
No pensamento de Dante, o Malebolge representa a degradação máxima da inteligência humana. Se os círculos anteriores do Inferno punem pecados de paixão ou violência, nesse lugar horrível estão os que usaram a astúcia, a razão e a palavra – dons humanos mais elevados – para enganar deliberadamente
Voltemos ao poema. O guia de Dante, Virgílio, é um símbolo da Filosofia, a Razão humana e, portanto, capaz de guiar Dante em sua jornada de autoconhecimento ao Inferno e ao Purgatório, mas não pode entrar no Paraíso. No Paraíso só entra a Graça e a Revelação de Deus – personificadas na bela Beatriz. A razão puramente humana não tem espaço ali.
As pessoas que Dante encontra em sua jornada estão todas mortas, ou seja, são almas – mas não de uma natureza etérea, imaterial. Ainda são capazes de sofrer, de experimentar angústias físicas e emocionais. Elas têm um outro tipo de corpo físico, eterno, mas sem dúvida alguma ainda físico. Alguns têm as carnes do corpo laceradas, mordidas por outras almas ou por demônios, mas assim que se estraçalham são então reconstituídas, apenas para tê-las retalhadas novamente. Outros são queimados debaixo de uma chuva de pedras de fogo, gritando de dor. Outros se afogam continuamente num mar de lama. Enfim, o inferno é brabo. Ali se experimentam cheiros nauseabundos, dores intensas e tormentos dos mais variados – um pouco como na terra, mas muito pior, amplificados e sem alívio por toda a eternidade.
E quais seriam os pecadores que merecem a pior punição de todas? Dante Alighieri imagina que cabe aos fraudadores e mentirosos o castigo mais intenso. São eles que vão para as partes mais profundas do inferno. Os que praticam violência contra si mesmos, contra os outros ou contra a natureza habitam as partes mais superficiais do inferno – terríveis também –, guerreando uns com os outros, se mordendo e se violando mutuamente em campo aberto. Mas, se comparado ao sofrimento do que está mais abaixo, isso vira café pequeno.
Para a surpresa do leitor desavisado, quem encontramos nas profundezas mais horrendas do lugar não são os serial killers, os estupradores, os assassinos em massa. No oitavo e no nono círculo do inferno, abaixo dos assassinos e violentos, estão os mentirosos, fraudadores e traidores. Eles habitam o local onde até as rochas são escuras, as fossas são cheias de excremento, e ficam ali mergulhados em fossos profundos – exatamente como as mentiras e falsidades que produzem.
Neste texto, quero parar com você nessa estação do Inferno batizada por Dante de Malebolge, que em italiano quer dizer “fossas” ou “valas más”. É um imenso anfiteatro circular de pedra, escavado em dez fossos concêntricos (as chamadas bolge), separados por muros de pedra e ligados por pontes arqueadas. Pode-se dizer que o Malebolge é a anticatedral. O historiador Benedetto Croce, entre outros autores, analisa toda a construção da Comédia e a compara à estrutura de uma catedral gótica. Eu acredito que, além dessa simbologia estrutural da obra, Dante também se baseou na ideia da catedral gótica cheia de torres e abóbadas para imaginar a parte mais profunda do inferno.
A divisão modular do Malebolge lembra a geometria das catedrais góticas, onde cada parte (capelas, naves e corredores) tem uma função precisa e está ligada a uma visão do cosmos como ordem inteligível. Assim como a catedral exprime a harmonia da criação divina, o Malebolge exprime a ordem da justiça divina, mesmo no castigo. No centro de tudo se encontra o poço mais profundo, que conduz ao nono círculo, onde habita Lúcifer.
Tudo ali, na anticatedral do inferno, é sombrio, repulsivo, fétido e labiríntico. O lugar é escavado numa rocha escura, e as valas são cheias de excremento. E em cada vala podre encontramos uma categoria diferente de pecadores, todos culpados de engano ou fraude. Mas por que a fraude e a mentira seriam os piores dos pecados, de acordo com Dante?
Para entender isso, temos que retornar a alguns séculos antes, a Agostinho. Agostinho concebe a razão humana como fonte de engano, mas não a renega. É possível usarmos a razão para sermos conduzidos a Deus. E, claro, tanto para Agostinho quanto para São Tomás de Aquino, não adquirimos fé sem o uso da razão. O falso conflito entre fé e razão foi uma falácia desenvolvida depois que o Iluminismo se apropriou da concepção da razão como sendo uma propriedade exclusivamente material.
A razão verdadeira voa nas asas da fé. Por isso, Agostinho diz: “Por que creio sou capaz de entender”. Credo ut intelligam. Em outras palavras – a confiança (que é a essência da fé) é também o alicerce da cognição humana. Temos que confiar em premissas, em ideias concebidas a priori, para poder apreender conhecimento novo – para poder usar a razão para tomar decisões sobre a vida, sobre o mundo. Sem confiança, não se aprende, não se pode conhecer a realidade do mundo onde vivemos – ou se construir uma sociedade funcional. A confiança é a base de todas as relações, tanto com Deus quanto em nossos relacionamentos horizontais.
A fraude, a mentira ou “a narrativa” destroem o tecido da confiança humana e são, portanto, os mais destruidores de todos os pecados. Aqui está, portanto, a descrição das dez fossas que compõem essa catedral invertida que abriga Lúcifer em seu ventre mais profundo:
Primeira Fossa (Bolgia é fossa em italiano) – Sedutores e gigolôs. Pecado: usaram da fraude e manipulação para explorar sexualmente outros.
Pena: marcham nus em duas fileiras opostas, açoitados continuamente por demônios chifrudos armados de chicotes. (Será que o “iluminado” João de Deus não estaria por lá?)
Segunda Fossa – Aduladores. Pecado: falsos lisonjeiros, enganadores por meio da palavra bajuladora. Mentem para agradar quem está no poder, para tirar proveito próprio. Pena: estão submersos em um rio de excremento humano, símbolo da sujeira de suas mentiras. (Alguém aqui se lembra das palavras lisonjeiras que nossos amigos supremos dizem uns para os outros?)
Terceira Fossa – Os falsos religiosos. Pecado: aproveitam-se de cargos eclesiásticos para vender bens espirituais em troca de dinheiro (simonia). Enganam os fiéis usando da fé. Pena: ficam enfiados de cabeça para baixo em buracos semelhantes a batistérios, com as pernas expostas e queimadas por chamas. (E os pastores e clérigos que usam do púlpito para validar as políticas mentirosas e cruéis daqueles que hoje gozam do poder simplesmente porque são arrogantes e se jactam de ter uma moral política superior à de todos os devotos “burros” que seguem o “populismo” da direita?)
Quarta Fossa – Adivinhos, magos e falsos profetas. Pecado: enganaram pessoas pretendendo ver o futuro ou manipularam forças ocultas para enganar e assim obter poder sobre os outros. Pena: caminham eternamente com a cabeça virada para trás, obrigados a andar para frente vendo apenas o que já passou – numa paródia cruel de sua pretensão de prever o futuro. (Diga-me que marxista não usa de sua verborragia mentirosa para “profetizar” um futuro social e político que só a sua ideologia pode gerar.)
Quinta Fossa – Corruptos, extorquidores, barganhadores de cargos públicos, os chamados barrattieri. Pecado: aí encontramos os políticos e funcionários públicos que se corromperam no exercício de funções públicas, que deveriam ter sido tão sagradas quanto o serviço religioso, vendendo decisões e justiça. Pena: submersos em um lago de piche fervente; se tentam emergir, são espancados por demônios com ganchos e tridentes. (Agora aqui, sim, estarão mergulhadinhos aqueles nos quais estamos pensando agora – se não se arrependerem, obviamente.)
Sexta Fossa – Hipócritas. Pecado: aqui se encontram os que escondem intenções perversas sob aparência de virtude. Aí podemos dizer que estarão os hipócritas “woke” de nossos dias, que alardeiam sua virtude pessoal em proveito próprio. Pena: caminham lentamente vestidos com pesadas capas de chumbo douradas por fora, símbolo de sua falsidade. (Tá difícil falar só de uma casta aqui.)
Sétima Fossa – Ladrões. Pecado: apropriaram-se do que não lhes pertencia, enganando e violentando o direito alheio. Pena: são mordidos por serpentes e se fundem com elas, num ciclo de transformações monstruosas que dissolve sua identidade.
Oitava Fossa – Maus conselheiros. Pecado: usaram inteligência e eloquência para induzir outros ao erro e ao mal. Pena: estão envolvidos por chamas que ocultam sua forma, cada língua de fogo abrigando uma alma. (Oh, quais dos políticos atualmente no Congresso não se encaixam aqui? Sugiro que pouquíssimos escaparão...)
Nona Fossa – Semeadores de discórdia. Pecado: dividiram países, sociedades, famílias, religiões e nações com sua ação ou palavra.
Pena: são dilacerados repetidamente por um demônio armado de espada; seus corpos se regeneram apenas para serem mutilados novamente. Ou seja, vão experimentar por toda a eternidade o que fizeram em vida a outros. (Sim, e que sofram bem sofridamente.)
Décima Fossa – Falsários. Pecado: inclui falsificadores de metais, falsificadores de pessoas (impostores), falsificadores de moeda e falsificadores de palavra (mentirosos e perjúrios). Pena: sofrem doenças horríveis, como lepra, hidropisia e febres ardentes; o espaço é tomado por pestilência, representando a corrupção que espalharam. (Para o mais mentiroso de todos, a pior fossa de todas – você sabe em quem estou pensando. Além dele, que tal imaginar no fundo os jornalistas “da narrativa”, pagos para mentir, os intelectuais que falsificam a “siência”, enfim, toda a corja de mentirosos que dá legitimidade a esse sistema?)
É difícil pensar em uma dessas fossas e não imaginar ali algum representante da elite atual do Brasil. Sejam eles os próprios políticos, sacerdotes da ideologia do engano prometendo um futuro falso; sejam juízes do falso veredicto e da falsa justiça; ou até as línguas ferinas dos midiáticos profissionais – jornalistas e pseudoexperts que trabalham incessantemente para disseminar as narrativas fraudulentas que mantêm víboras autoritárias no poder, lhes preservando uma falsa dignidade. Essa gente é profissional em ocultar a verdade, elaborar o engano, construir um castelo de cartas “lógicas” para mergulhar nosso povo nas trevas da ignorância e do desespero.
No pensamento de Dante, o Malebolge representa a degradação máxima da inteligência humana. Se os círculos anteriores do Inferno punem pecados de paixão ou violência, nesse lugar horrível estão os que usaram a astúcia, a razão e a palavra – dons humanos mais elevados – para enganar deliberadamente. Por isso, a fraude ocupa um lugar mais profundo e sombrio que a violência.
Não sei você, mas eu não sou melhor do que Davi e os salmistas bíblicos. Leia os salmos precatórios e constate que, algumas vezes, ajuda até aos homens mais santos pensar em seu inimigo sendo punido. É por isso que cristãos conservadores não têm a necessidade de incorrer em violência política real, de sair por aí matando seus inimigos – porque temos uma visão do mal punido assim, de maneira sistemática e justa, na eternidade. Não cabe a mim, aqui na terra, puni-lo; você será certamente punido por toda a eternidade, se não se arrepender. Não sei você, mas essa visão – de nossos políticos, juristas, intelectuais e jornalistas, todos sofrendo no Malebolge – me consola. Eles vão pagar pelo mal que nos causam e pelos crimes que cometem contra todos os inocentes deste nosso Brasil.
Braulia Ribeiro é mestre em Linguística, mestre em Divindade pela Yale University e doutora em História e Teologia Política na University of St. Andrews (Escócia).
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos