Médico com estetoscópio em punho, representando o debate sobre as novas regras do MEC para a abertura de cursos de medicina no país.
A flexibilização de regras para a criação de novos cursos de medicina tem sido vista por parte do setor como um desequilíbrio regulatório que afeta a livre concorrência. (Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil)

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As novas regras do MEC para a abertura de cursos de medicina voltaram a gerar um forte embate no ensino superior privado. Associações do setor criticam o que consideram um "desequilíbrio regulatório", alegando que as novas regras para cursos de medicina violam a livre concorrência ao favorecerem instituições sem fins lucrativos, enquanto o MEC defende a legalidade das mudanças.

O cerne do conflito regulatório

Representantes de instituições com fins lucrativos, como a Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) e a Associação das Mantenedoras de Ensino Superior (Amies), argumentam que o novo edital cria um tratamento desigual entre as instituições privadas e as Instituições Comunitárias de Educação Superior (ICES).

O conflito reside na questão da igualdade de oportunidades regulatórias: se o acesso a uma política pública, justificado por uma função social diferenciada, deve flexibilizar exigências técnicas que permanecem rigorosas para o restante do mercado. A alternativa seria que todos os segmentos com a mesma finalidade seguissem critérios objetivos e uniformes.

A lei do Mais Médicos e os editais da discórdia

O chamamento público funciona como um processo seletivo para a criação de novos cursos, seguindo critérios do MEC e da Lei do Mais Médicos (Lei nº 12.871/2013). A norma determina que a abertura de graduações em Medicina ocorra em locais com menor concentração de médicos.

O edital 5, de abril de 2024, exigia que a faculdade e o hospital parceiro pertencessem à mesma mantenedora (mesmo CNPJ) e estivessem no mesmo município. Contudo, o edital 15/2025 flexibilizou essa regra para instituições sem fins lucrativos, permitindo parcerias com hospitais públicos ou empresas públicas municipais, sem a necessidade de CNPJ único. Além disso, a nova regra não exige contrapartida financeira obrigatória para as comunitárias, enquanto as demais IES devem repassar 10% do faturamento do curso para a rede pública de saúde.

Posições divergentes: setor privado vs. MEC

A ABMES solicitou ao MEC, via ofício, que os mesmos critérios flexibilizados sejam estendidos às demais instituições privadas para garantir tratamento equitativo. Já a Amies defende o oposto: que as regras mais rígidas aplicadas às instituições com fins lucrativos também valham para as comunitárias.

Segundo a ABMES, a flexibilização cria um desequilíbrio competitivo e reduz as barreiras de entrada, desalinhando-se do objetivo de interiorização da política. A associação aponta que as instituições sem fins lucrativos obtiveram facilidades como:

  • Possibilidade de parceria com hospitais públicos ou empresas públicas do mesmo município.
  • Prazos estendidos para a implantação de residências médicas.

Priscila Planelis, secretária-executiva da Amies, afirmou que “não há justificativa técnica ou jurídica” para a prioridade, visto que todas as instituições oferecem benefícios à comunidade. Para ela, o edital “contraria o princípio constitucional da isonomia”.

O consultor jurídico da Amies, Esmeraldo Malheiros, acrescentou que o novo edital se contrapõe à decisão do STF na ADC 81, que validou a exigência do chamamento público prévio para a abertura de cursos de Medicina.

Malheiros destacou que as instituições privadas “se submetem a um rigoroso processo de autorização, que inclui contrapartidas aos municípios, comprovação de leitos SUS na proporção de cinco leitos por vaga de Medicina, e demonstração de relevância e necessidade social, baseada na densidade de 3,73 médicos por mil habitantes”.

A defesa do MEC e das instituições comunitárias

Em resposta, o MEC e a Associação Brasileira das Instituições Comunitárias de Educação Superior (Abruc) sustentam que o tratamento diferenciado é legalmente justificado. A pasta afirmou que as ICES possuem “natureza sui generis” e prerrogativas específicas em razão de sua função social, o que permite a realização de parceria com o Poder Público para a oferta de serviços de interesse público na área da saúde.

Segundo o ministério, a alteração por meio do edital 15/2025 apenas regulamenta essa possibilidade, já prevista em lei. No caso da PUC-Rio, que aguardava há 10 anos pela abertura do curso, o MEC ressaltou que, como instituição comunitária qualificada, a universidade “poderá participar do edital, observando todas as exigências”, mas a “habilitação, contudo, não garante a autorização do curso”. Segundo o ministério, “o fato de uma instituição de educação superior ter sido habilitada para o protocolo de processo de autorização de curso de Medicina no MEC não enseja a garantia de autorização do curso”.

“A instituição de educação superior habilitada nos termos do Edital deverá protocolar processo de autorização de curso de Medicina no Sistema e-MEC, que seguirá o fluxo regular dos processos regulatórios dentro do MEC, passando por todas as etapas, incluindo avaliação in loco por comissão de especialistas a cargo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e análise pelo Conselho Nacional de Saúde”, disse a pasta, em nota.

O assessor jurídico da Abruc, Dyogo Patriota, argumentou que não há vantagens, mas sim regimes jurídicos diferentes. Ele apontou que as ICES não vivem pelo lucro, reaplicam o superávit em seus objetivos institucionais e são, por disposição legal, a primeira opção para a implementação de políticas públicas em áreas como educação e saúde.

“As comunitárias buscam superávit, mas não vivem pelo lucro, reaplicam tudo em seus custos e em seu objetivo institucional. O comunitarismo não é só um nome, mas é um ramo de pessoas jurídicas (associações e fundações) que devem ser (por disposição constitucional e legal) a primeira opção para implementação de políticas públicas em diversas áreas, entre elas educação, saúde e assistência social”, disse Patriota à Gazeta do Povo.

Para o assessor jurídico da Abruc, as instituições privadas têm muitas facilidades que as comunitárias não têm. “Elas podem buscar leitos SUS fora da sua cidade, se conveniando com hospitais públicos ou privados. Ao contrário, as comunitárias só podem se conveniar com hospitais públicos de grande porte (400 leitos ou mais) e devem cumprir todos os requisitos na sua cidade sede”, afirmou o advogado.

Flexibilização na residência médica: um ponto crítico

Uma das maiores diferenças introduzidas pelo edital 15/2025 está relacionada aos programas de residência médica, que são cruciais para a qualificação das unidades hospitalares. Pela regra original, a unidade hospitalar deveria dispor de programas de residência médica em no mínimo 10 especialidades, sendo ao menos três prioritárias, no momento da habilitação.

No caso das comunitárias, a mantenedora poderá apresentar a disponibilização temporária dos programas de residência médica oferecidos em outros hospitais mantidos pelo poder público no mesmo município. Essa flexibilidade deve vir acompanhada do compromisso de implantar as residências médicas faltantes na unidade hospitalar parceira até o sexto ano de funcionamento do curso de Medicina.

“As instituições privadas que não são comunitárias permanecem submetidas às exigências rigorosas do Edital nº 1/2023, editado no contexto do Programa Mais Médicos, que demanda, entre outros pontos, demonstração de necessidade social regional, comprovação de percentuais mínimos de leitos SUS por vaga, contrapartidas financeiras relevantes e residência médica implantada desde o início do ciclo autorizativo. Em contraste, as Instituições Comunitárias de Educação Superior (ICES) passaram a se beneficiar de um modelo mais acessível, flexível e menos oneroso”, disse a ABMES em ofício ao MEC.

Classificação das instituições de ensino

As instituições de ensino são classificadas de três formas, segundo o artigo 19 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), que possuem características distintas:

  1. Públicas: Assim entendidas as criadas ou incorporadas, mantidas e administradas pelo Poder Público.
  2. Privadas: Assim entendidas as mantidas e administradas por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
  3. Comunitárias: Entidades de direito privado, que também podem ser qualificadas como confessionais ou filantrópicas.

O MEC lembrou que a Lei nº 12.881/ 2013 estabeleceu critérios obrigatórios para que uma instituição seja certificada como ICES e, considerando a função social destas entidades, lhes atribui as seguintes prerrogativas:

  • Ter acesso aos editais de órgãos governamentais de fomento direcionados às instituições públicas.
  • Receber recursos orçamentários do poder público para o desenvolvimento de atividades de interesse público.
  • Ser alternativa na oferta de serviços públicos nos casos em que não são proporcionados diretamente por entidades públicas estatais.
  • Oferecer de forma conjunta com órgãos públicos estatais, mediante parceria, serviços de interesse público, de modo a bem aproveitar recursos físicos e humanos existentes nas instituições comunitárias, evitar a multiplicação de estruturas e assegurar o bom uso dos recursos públicos.

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