O desejo por quem nos tornamos perto de alguém 

Chamamos de paixão o que, muitas vezes, é autoencantamento atribuído; a pessoa apenas ilumina um lugar emocional que estava vivo, só não acessível

  • Por Larissa Fonseca
  • 01/12/2025 20h29
Divulgação/Netflix A série "Ninguém Quer" acompanha o relacionamento de Noah (Adam Brody) e Joanne (Kristen Bell) A série "Ninguém Quer" acompanha o relacionamento de Noah (Adam Brody) e Joanne (Kristen Bell)

Há um encantamento que antecede a paixão. Uma pequena dose de autoestima aparece, a atenção afina, o corpo reage, a energia muda. A neurociência explica esse movimento como um aumento de dopamina em áreas conectadas à expectativa e à recompensa. O outro se torna gatilho para uma potência que estava em nós, mas adormecida. 

Esse brilho reacende aspectos internos que o cotidiano apagou. A nova rotina tem vitalidade. E é nesse espaço que mora um equívoco comum. Chamamos de paixão o que, muitas vezes, é autoencantamento atribuído. A pessoa apenas ilumina um lugar emocional que estava vivo, só não acessível. 

É aqui que o fenômeno se cruza com uma nuance discreta do narcisismo cotidiano. Não aquele narcisismo clínico, mas o traço humano de se encantar pelo próprio reflexo emocional. Não nos apaixonamos pelo outro. Nos apaixonamos pela versão que surge quando alguém acende o que ficou escondido. Ou seja: confundimos paixão real com paixão projetada. 

A real nasce da curiosidade pelo outro. Há interesse, presença, vontade de conhecer o que existe além da superfície. A paixão projetada nasce da curiosidade por quem eu me torno no encontro. É a busca pelo próprio reflexo e não pela outra pessoa. Uma acalma. A outra acelera. Uma aproxima. A outra idealiza. 

Estudos de Harvard e Virgínia mostram que a incerteza aumenta o envolvimento afetivo porque o cérebro registra o imprevisível como mais valioso. A dúvida vira combustível. Por isso, situações difíceis, proibidas ou pouco prováveis produzem uma sensação de profundidade emocional maior do que a realidade sustenta. A intensidade não prova vínculo, é ativação química. 

No consultório, muitos pacientes dizem buscar alguém tranquilo, alguém de baixo risco emocional que funcione como porto seguro. A figura que desperta uma versão estável para sustentar todos os dias. Mas esse é só o início da história. Após algum tempo vamos nos perder do outro para nos encontrarmos novamente. A compatibilidade cai

pois não há sincronia absoluta. Cada um evolui em seu tempo. A dificuldade está em reencontrar o caminho de conexão.  Mas será que precisamos de alguém que funcione como espelho para nos reconectar com partes que deixamos adormecer? Ou podemos, simplesmente, aceitar que há partes do outro que podemos aceitar e conviver? 

Com a segunda temporada recém-lançada na Netflix, a série Ninguém Quer retrata a pergunta que atravessa tantas relações: como duas pessoas tão diferentes conseguem criar e recriar compatibilidade ao longo do tempo? A série acompanha Joanne (Kristen Bell), uma podcaster que fala abertamente sobre sexo que se apaixona pelo rabino Noah (Adam Brody). Um choque inevitável de estilos de vida, crenças, valores familiares e a delicada tarefa de se apaixonar de novo enquanto se reconhece o peso das diferenças. O enredo mostra o esforço contínuo para transformar desencontros em linguagem comum e como a conexão só se torna possível quando ambos estão dispostos a enxergar o outro e flexibilizar. 

Pesquisas da UCLA mostram que, ao sermos vistos, ativamos áreas cerebrais associadas à recompensa social e ao pertencimento. Quando alguém nos reconhece, o corpo registra como vínculo. Mas nem sempre ser lido(a) é ser amado(a). E a “fome” de ser percebida pode transformar qualquer gesto em promessa. Mas isso não é reciprocidade. 

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No fim, o encantamento não é sobre quem chega. É sobre o que desperta. A provocação é inevitável. Já parou pra pensar se a intensidade que você atribui ao outro sempre foi sua? Se você realmente sente falta do outro ou de quem você é quando está perto dessa pessoa? A coragem começa quando entendemos que essa versão continua disponível, mesmo quando o outro vai embora.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.