padre julio lancellotti
O padre Júlio Lancellotti, em foto de 2023. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Por determinação do arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, o padre Júlio Lancellotti suspendeu as transmissões on-line de suas missas e reduziu a atuação nas redes. A ordem visa “recolhimento e proteção”. O padre acatou. Como sacerdote, curvou-se à hierarquia e à autoridade do Magistério. O episódio, contudo, transbordou a sacristia e foi tragado pelo escândalo digital. O que era uma questão de disciplina clerical e prudência pastoral virou, para uma plateia que desconhece a natureza da Igreja, símbolo de censura e perseguição. Eles não esperam um padre; querem um assistente social com figurino sacro.

Para surpresa de zero pessoas, a politização tornou-se ruidosa com a deputada federal Erika Hilton. Embora declare não ser católica – como se precisasse avisar –, a parlamentar assumiu a defesa do padre e anunciou ofícios à embaixada do Vaticano e ao próprio arcebispo. A ignorância sobre a eclesiologia soma-se aqui ao desprezo pelo princípio republicano. O Estado laico não existe apenas para impedir a interferência religiosa na política; serve, com igual importância, para blindar a Igreja da ingerência estatal e do autoritarismo teológico secular. A autonomia das confissões religiosas é a barreira contra o arbítrio do poder temporal. A deputada ignora essa fronteira civilizatória: acha que a arquidiocese é uma repartição pública sujeita a lobby e o arcebispo é um gerente de médio escalão.

Os críticos investem contra dom Odilo porque não enxergam no padre Júlio Lancellotti um ministro da missão salvífica de Cristo, mas um funcionário da “justiça social”

O ataque oportunista a dom Odilo revela a natureza dessa militância. Os críticos investem contra o arcebispo porque não enxergam no padre Júlio um ministro da missão salvífica de Cristo, mas um funcionário da “justiça social”. Para esse grupo, a economia da salvação, os sacramentos e a fidelidade doutrinal são irrelevantes; importa apenas a utilidade política do clérigo. Dom Odilo, ao exercer seu dever de vigilância, atrapalha a agenda e interrompe o espetáculo. Logo, deve ser neutralizado. Querem o padre, mas dispensam o bispo; querem a batina, mas rejeitam a Igreja.

É nesse contexto que a defesa de Lancellotti deve ser lida. A descrição recorrente de uma “obediência serena e sem espetáculo” colide com a realidade crua de sua atuação pública. Quebrar paralelepípedos a marretadas diante das câmeras é tudo, menos liturgia. Talvez seja agitação e propaganda. Talvez. Afinal, atire a primeira pedra quem nunca confundiu o altar com o palanque. O padre Lancellotti está a anos-luz do monge cartuxo em oração ou do santo que beija os pés de leprosos no silêncio do anonimato, longe dos likes.

Ele acolhe e alimenta moradores de rua, e o gesto material tem seu valor. Contudo, a caridade opera sob a lógica de humildade para ser vista: a sopa chega acompanhada da lente. A miséria é quase que instrumentalizada como cenografia de virtude. O pobre deixa de ser o rosto sofredor de Cristo para tornar-se figurante involuntário de uma agenda, onde a dor alheia serve de alavanca para a autoridade moral do benfeitor.

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Convenhamos: alguns críticos do padre reagem muito mais a ele como um ícone da idolatria secular. A figura do padre foi cooptada – e ele permitiu a cooptação – como totem ideológico por grupos que desprezam a doutrina católica, mas correm para explorar a batina quando convém. Ele não é celebrado por sua teologia ou pela pregação do Evangelho, mas por sua performance de justiceiro social, aplaudido por uma claque de palpiteiros que nem católicos são. O sacerdote aqui é só o mascote progressista esvaziado de sua dimensão transcendente.

Aqui reside o cinismo da defesa. Quem entra na arena pública para disputar os rumos da polis – criticando prefeitos, pressionando governos e derrubando estruturas urbanas – deve aceitar o ônus de todo conflito democrático. Classificar o embate político como perseguição à fé é um truque barato para silenciar o debate e imunizar o agente. É isso o que essa esquerda progressista faz com a voz mansa do sacerdote. Lancellotti jamais foi contestado por celebrar a Eucaristia, por exemplo, tampouco exaltado por isso. A crítica mira a interpretação da fé como programa político e a confusão deliberada entre caridade cristã e ativismo partidário.

A decisão de dom Odilo restaura a ordem e a sanidade institucional. A autoridade episcopal recorda que a Igreja não é assistencialismo, o sacerdócio não é cargo de representação e a liturgia não se submete ao escrutínio de deputados. Isso para ficar dentro daquilo que é público dessa decisão, para ser bem justo e cauteloso. Enfim, o recolhimento imposto aponta para uma verdade incômoda ao nosso tempo viciado em visibilidade: causas justas não autorizam quaisquer meios simbólicos, e a indignação social não substitui a vocação sobrenatural do amor do Nosso Senhor.