Por que o Brasil deve tanto aos italianos quando o assunto é vinho?
Imigração não apenas contribuiu para o povoamento do Sul do Brasil, mas também moldou profundamente a cultura local
O Brasil deve muito aos imigrantes italianos na sua formação cultural, nos seus hábitos, notadamente aqueles eno-gastronômicos e com ênfase nos estados do Sul e Sudeste da Nação, especialmente Rio Grande do Sul e São Paulo.
A imigração italiana para o Estado do Rio Grande do Sul teve início oficialmente em 1875, quando as primeiras famílias chegaram à região que viria a ser conhecida como Colônia Caxias. A maior parte desses imigrantes vinha das regiões do Vêneto, Trentino-Alto Ádige (Tirol do Sul), Lombardia, Friuli-Venezia Giulia e, em menor escala, da Emília-Romanha e do Piemonte. Eram, portanto, oriundos principalmente do Norte da Itália, uma área marcada por dificuldades econômicas e forte pressão demográfica no final do século XIX.
Os motivos que impulsionaram essa migração foram diversos, tais como a crise agrícola e fragmentação das propriedades no Norte da Itália, que impossibilitava a sobrevivência de muitas famílias; a pobreza crescente e falta de terras produtivas. Estas situações críticas tinham, em contrapartida, as políticas de incentivo à imigração promovidas pelo Império do Brasil, que buscava ocupar o território sulino e formar pequenas propriedades familiares produtivas.
Os italianos trouxeram, ao Sul e Sudeste do Brasil, um conjunto de práticas culturais que moldariam profundamente a identidade dos estados sulinos, como, por exemplo, a língua e dialetos, especialmente o talian (baseado no vêneto); a religiosidade católica, com forte devoção comunitária e festas religiosas; a culinária, incluindo massas, polenta, salames, queijos e hábitos de convivência ao redor da mesa. Outrossim, é importante ressaltar que os italianos trouxeram práticas de trabalho familiar na agricultura, com organização em pequenas propriedades e valorização da cooperação comunitária; nesta esteira a tradição do cultivo de videiras e do vinho, se tornaria uma das maiores marcas da presença italiana no Sul do Brasil.
Quando chegaram ao Rio Grande do Sul, os italianos encontraram um ambiente propício para o cultivo de videiras, ainda que exigisse adaptação. Inicialmente, plantaram videiras americanas e híbridas, pois eram mais resistentes às doenças e ao clima úmido da Serra Gaúcha. Com o tempo, porém, começaram a introduzir uvas viníferas europeias (Vitis vinifera), buscando maior qualidade na produção. As principais regiões de fixação desses imigrantes — como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Garibaldi e Farroupilha — transformaram-se em importantes polos vitivinícolas do Brasil.
Além do Rio Grande do Sul, parte dos imigrantes italianos migrou posteriormente para Santa Catarina (notadamente os vales de São Joaquim, Caçador e Videira) e o Paraná (Colonia Vitória, Colombo, Campo Largo e região de Curitiba). Nessas áreas, reproduziram o modelo de vinicultura familiar, adaptando as videiras italianas ao clima mais frio de altitude. Em São Paulo, a imigração italiana estava ligada a cafeicultura.
A partir do início do século XX, colonos e seus descendentes passaram a trazer e cultivar castas tradicionais da Itália, buscando maior qualidade e identidade nos vinhos. Entre as principais uvas Vitis vinifera de origem italiana introduzidas no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, destacam-se:
Tintas:
- Barbera – muito difundida pelos piemonteses; adaptou-se bem ao clima úmido da Serra.
- Bonarda (Douce Noir/Charbono) – muito plantada pelos imigrantes e erroneamente associada à Bonarda italiana, mas ainda assim de origem ligada ao norte da Itália.
- Lambrusco – introduzida para vinhos leves e frisantes, típica da Emília-Romanha.
- Sangiovese – embora mais tardia que outras, tornou-se importante em algumas regiões catarinenses e paranaenses.
- Teroldego – varietal do Trentino, introduzido mais recentemente, mas com presença histórica em plantações coloniais.
- Refosco – trazida por friulanos, embora pouco difundida.
- Lagrein – casta do Alto Ádige, de presença mais recente, mas ligada à herança imigrante.
Brancas:
- Trebbiano – uma das primeiras uvas brancas viníferas italianas a serem cultivadas.
- Moscato Giallo e Moscato Bianco – amplamente utilizadas na Serra Gaúcha, especialmente para vinhos aromáticos e espumantes; introduzidas por vênetos e trentinos.
- Malvasia – utilizada para vinhos brancos aromáticos, com longa tradição na Itália.
- Peverella – de origem do Trentino, hoje histórica no Rio Grande do Sul, usada por décadas antes do predomínio das uvas internacionais.
Entretanto, o grande salto qualitativo no cultivo e manejo das castas italianas, focando na produção de vinhos de categoria internacional, veio no final do século XX e começo deste século. Vinhateiros empreendedores e crentes na melhoria do vinho nacional passaram a pesquisar, criar e apresentar vinhos varietais de castas italianas com qualidade extrema. Destaco aqui o trabalho genial de Marco Danielle, do Atelier Tormentas, vinhateiro responsável, num primeiro momento, pelo manejo correto da Pinot Noir no Rio Grande, mas que ousou e ousa criar vinhos espetaculares a partir, por exemplo, da Barbera. Vale destacar, também, o pioneirismo do Prof. Firmino Splendor, que, como primeiro presidente da ABE (Associação Brasileira de Enologia), e que tem importante papel no desenvolvimento da cadeia produtiva da uva e do vinho. Já Gregório Salton, jovem enólogo que, mantendo tradição, tem inovado no mercado, com vinhos de categoria internacional. No Rol dos vinhateiros nacionais, merece menção Adriano Miolo, responsável por safras premiadas e famosas da vinícola que leva seu nome, e Luís Henrique Zanini, que, junto com Talise, resgatou métodos ancestrais de cultivo e produção de vinho e voltou seu olhar para uvas quase extintas por aqui, como a Peverella, Trebbiano e Moscato. Aqui faço um parêntese: a verdade é que muitos têm o hábito de cultuar vinhos de enólogos internacionais (vide Michel Rolland), entretanto a genialidade do vinhateiro nacional há que ser lembrada e respeitada.
Fechando, é importante ressaltar que a imigração italiana não apenas contribuiu para o povoamento do Sul do Brasil, mas também moldou profundamente a cultura local. Sua herança aparece na culinária, língua, religiosidade, organização social e, de maneira muito evidente, na vitivinicultura — atividade que se transformou em um dos mais importantes legados italianos no Brasil. As técnicas, tradições e variedades de uvas trazidas pelos imigrantes foram fundamentais para a formação das regiões produtoras de vinho no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, e continuam influenciando a identidade da produção vitivinícola brasileira até hoje. Salut!
*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.
