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A operação policial que ocorreu no conjunto de favelas do Complexo da Penha, no Rio de Janeiro, no último dia 28 de outubro, causou enorme impacto na opinião pública brasileira, por escancarar a gravíssima situação da segurança pública no Rio de Janeiro e no país.
Cerca de 2,5 mil policiais atuaram para cumprir dezenas de mandados de prisão. Os resultados são amplamente conhecidos: 121 mortos — entre eles 4 policiais — 99 presos e 120 armas apreendidas, das quais 93 eram fuzis. Os policiais operaram em um ambiente em que drones foram utilizados pelos criminosos para lançar explosivos e avançaram enfrentando barricadas em chamas, propositalmente erguidas para dificultar a ação.
Vamos começar pelo óbvio: o controle armado que grupos criminosos estabeleceram sobre determinados territórios no Rio de Janeiro, e também em vários outros estados da federação, atingiu níveis inadmissíveis, e não é de hoje. Para além do narcotráfico, esses grupos exploram de todas as formas possíveis os serviços nas comunidades sob seu domínio. Da venda de botijões de gás à exploração da “gatonet”, da cobrança de “taxas” de moradores e comerciantes à ocupação irregular do mercado imobiliário, é ampla a gama de atividades ilícitas que geram lucros a essas organizações.
A gravidade da situação provoca justa indignação social, e o debate entre especialistas propõe as mais variadas abordagens. Infelizmente, como quase todos os temas do debate público contemporâneo, este também rapidamente adquiriu contornos de embate ideológico, como se um problema tão complexo pudesse ser resolvido por uma fórmula simplificadora.
Infelizmente, como quase todos os temas do debate público contemporâneo, este também rapidamente adquiriu contornos de embate ideológico
Nesse contexto, surgem as propostas de se considerar os grupos criminosos organizados brasileiros como organizações terroristas e de reconhecer que o Brasil abriga, em seu território, um Conflito Armado Não Internacional (CANI). Essas duas medidas foram recentemente adotadas pelos Estados Unidos, que passaram a listar alguns grupos criminosos venezuelanos, mexicanos, colombianos e salvadorenhos como organizações terroristas. Nesse contexto, os americanos reconheceram estar travando um CANI contra tais grupos, o que, segundo o entendimento das autoridades americanas, autorizou ações de eliminação sumária de narcotraficantes que transportam drogas em pequenos barcos e semissubmersíveis no Caribe e na costa pacífica da Colômbia.
Transportar essas medidas para o caso brasileiro seria adequado aos interesses nacionais? Na minha opinião, não.
O terrorismo é um fenômeno essencialmente político — e é isso que o distingue de outras formas de criminalidade violenta, mesmo que, por vezes, usem métodos semelhantes. Os terroristas recorrem à violência para produzir medo coletivo e, com isso, pressionar o Estado ou a sociedade a adotar determinadas posições ideológicas, religiosas ou políticas. Claramente, essa dimensão não está presente na criminalidade organizada brasileira, que, embora utilize métodos capazes de causar terror na população, tem como objetivo principal manter o controle sobre os territórios em que atua.
Por outro lado, reconhecer que o Brasil abriga em seu território um Conflito Armado Não Internacional agregaria ainda mais complexidade à questão. O CANI está previsto no Protocolo Adicional II às Convenções de Genebra e trata dos conflitos que ocorram no interior do território de um país que tenha aderido às Convenções. A partir desse reconhecimento, as normas do Direito Internacional Humanitário, as chamadas “leis da guerra”, passam a vigorar, e os criminosos passam a ser tratados como inimigos.
É evidente que tal reconhecimento confere certo grau de legitimidade à outra parte, que passa a ser tratada como “combatente”. Um combatente inimigo, em uma guerra, tem o direito de atacar e matar seu adversário. É do interesse da sociedade brasileira conferir essa legitimidade aos integrantes das facções criminosas? Evidentemente que não.
Há muitos outros aspectos altamente problemáticos em se rotular como “terrorismo” — e em reconhecer como CANI — o enfrentamento ao crime organizado no Brasil. As consequências vão desde repercussões negativas sobre a reputação internacional do país, dificultando a atração de investimentos, até a abertura de espaço para a imposição de sanções internacionais motivadas por razões geopolíticas, disfarçadas sob o pretexto de “combate ao terrorismo”.
Talvez a enorme repercussão da operação policial no Complexo da Penha sirva como um ponto de virada no enfrentamento ao crime organizado, assim como foi o assassinato, em 1992, do juiz Giovanni Falcone, em um atentado a bomba que utilizou cerca de 500 quilos de explosivos, na Itália. Nos anos 1980 e 1990, a máfia siciliana detinha enorme poder territorial e econômico, controlava regiões inteiras e assassinava magistrados, políticos e policiais. A resposta do Estado italiano não foi classificar a máfia como organização terrorista nem considerar que existia um conflito armado em seu território, mas fortalecer as instituições: ampliou-se a cooperação entre polícias, promotorias e o sistema judiciário; criaram-se instrumentos de investigação financeira e de proteção a testemunhas; e aperfeiçoou-se a legislação antimáfia, agravando-se significativamente as penas dos crimes a ela relacionados.
O momento atual é grave. Já passou da hora de o Brasil enfrentar o crime organizado. Isso exige uma estratégia integrada entre os governos federal, estaduais e municipais; grande investimento em inteligência — tanto em recursos para o Sistema Brasileiro de Inteligência quanto em mudanças legislativas que permitam seu funcionamento mais eficiente —programas de desarticulação econômica dos grupos criminosos, com bloqueio de fluxos financeiros; e, principalmente, a efetiva ocupação pelo Estado das áreas hoje dominadas por essas organizações.
A tentação de declarar guerra ao crime é compreensível diante da brutalidade cotidiana, mas o caminho da ampliação indiscriminada do conceito de terrorismo conduziria o país a uma situação perigosa. O Brasil não precisa do reconhecimento de um conflito armado no interior do seu território, e sim de um Estado presente, forte e legítimo. A verdadeira resposta passa por restaurar a autoridade pública nas áreas dominadas pelo crime, sem abdicar do Estado de Direito, articulando inteligência, coordenação e vontade política. Foi assim que a Itália desarticulou o poder da máfia e restabeleceu a autoridade do Estado. É assim que o Brasil poderá, enfim, enfrentar com eficácia o crime organizado.
