Máquinas agrícolas e peças passam a ser taxadas na implantação da reforma tributária, corroendo as margens de lucro do setor.
Máquinas agrícolas e peças passam a ser taxadas na implantação da reforma tributária, corroendo as margens de lucro do setor. (Foto: Wenderson Araujo/Trilux)

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A reforma tributária que começa a ser implantada no começo de 2026 deveria simplificar a vida do produtor rural, mas fará o contrário. A partir de janeiro, o agronegócio terá de lidar com novos impostos (IBS e CBS), perder isenções fiscais e digitalizar todas as operações. Quem não se adaptar agora enfrentará custos maiores e perderá competitividade para grandes empresas já preparadas.

Roberto de Lázari, diretor da consultoria tributária All Tax, classifica a reforma como uma redistribuição das "placas tectônicas" da economia — uma mudança profunda que altera vantagens competitivas entre setores.

O agronegócio será duramente atingido. Produtores que compram de fornecedores sem nota fiscal verão suas margens de lucro encolherem pela exigência de rastreamento fiscal completo e pela dificuldade de gerenciar créditos tributários – descontos de impostos já pagos em etapas anteriores – em cadeias produtivas longas.

"A inteligência fiscal deixará de ser acessória para virar questão de sobrevivência", afirma Lázari, destacando que isso exigirá investimentos significativos em tecnologia e pessoas.

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Riscos imediatos: insumos mais caros e impostos políticos

Especialistas alertam: quem não se organizar rapidamente pagará mais impostos. Os principais riscos são:

  • Insumos mais caros: Fertilizantes, defensivos e máquinas agrícolas perderão isenções fiscais, passando de tributação zero para alíquotas efetivas entre 10% e 11%. Essa mudança pressiona margens de lucro já apertadas no setor.
  • Imposto Seletivo como risco político. Teoricamente desenhado para desestimular produtos nocivos, o IS – também chamado de "imposto do pecado" – pode ser usado para sobretaxar insumos agrícolas sob justificativas ambientais subjetivas, frequentemente baseadas em teses acadêmicas desconectadas da realidade do campo.

"Não existe uma receita de bolo e certamente haverá perdedores", afirma Bianca Xavier, tributarista e professora da FGV Direito Rio.

Pequenos produtores podem estar entre os mais afetados. A indefinição sobre o "crédito presumido" — mecanismo que compensa a ausência de tributação na origem — representa o maior risco para esse grupo.

Mudança de paradigma e o novo CNPJ alfanumérico

O agronegócio vive uma mudança de paradigma, diz Renato Conchon, coordenador do Núcleo Econômico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).

Produtores com faturamento acima de R$ 3,6 milhões anuais — cerca de 5% do total de produtores, mas responsáveis por grande parte da produção — serão obrigados a entrar no regime regular de tributação (sistema completo de apuração e pagamento de impostos), com toda a burocracia do novo sistema.

Além da redistribuição de riscos, a reforma impõe mudanças estruturais imediatas. O novo "CNPJ alfanumérico", um identificador único para produtores pessoa física, permitirá controle fiscal digital sem exigir que o produtor se registre como empresa. Na prática, a fiscalização sobre o produtor pessoa física será tão rigorosa quanto a de uma empresa.

Duas questões amplificam a urgência dessa adaptação:

  • A alíquota-base (percentual de imposto cobrado) da reforma ainda não está definida, o que gera insegurança jurídica, segundo Felipe Azevedo Maia, tributarista da AZM Law. Estimativas indicam que essa alíquota-base pode ficar entre 26,5% e 28% — bem acima da média de 19% dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
  • Há um problema mais imediato: o produtor precisa atualizar seus sistemas de gestão (ERPs) e adaptar a emissão de notas fiscais para incluir os novos tributos IBS e CBS.

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As novas regras fiscais

A partir de 1.º de janeiro de 2026, o sistema tributário brasileiro passa por uma mudança estrutural. Dois novos impostos substituem tributos estaduais, municipais e federais que vigoraram por décadas:

  • IBS (Imposto sobre Bens e Serviços): substitui o ICMS (estadual) e o ISS (municipal), unificando a tributação sobre consumo em um único imposto compartilhado entre estados e municípios.
  • CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços): substitui PIS e Cofins (federais), consolidando a tributação federal sobre o consumo.

Implementação gradual com burocracia imediata

A reforma será implementada em fases. Em 2026, IBS e CBS terão alíquotas (percentuais de imposto) simbólicas de 0,1% e 0,9%. Em uma venda de R$ 100 mil, isso representa apenas R$ 100 e R$ 900, a serem abatidos dos impostos "antigos". O governo afirma que o objetivo não é arrecadar, mas testar os sistemas.

O produtor será obrigado a calcular e destacar – ou seja, informar – esses impostos em cada nota fiscal. Na prática, a burocracia do novo sistema começa na virada do ano, encerrando as operações fiscais simplificadas.

A mudança mais imediata ocorre na nota fiscal. A partir de 1.º de janeiro, será obrigatório preencher novos campos na Nota Fiscal Eletrônica (NF-e) e na Nota Fiscal de Consumidor Eletrônica (NFC-e) para destacar CBS e IBS.

O sistema emissor precisa estar atualizado para gerar documentos conformes com as novas regras de validação da Secretaria da Fazenda. Qualquer erro na estrutura dos campos pode levar à rejeição das notas.

Os sistemas de gestão (ERPs) precisam ser atualizados até dezembro, exigindo investimento em tecnologia e revisão do cadastro de produtos para garantir conformidade com as novas regras de validação da Receita. Felipe Azevedo Maia, da AZM Law, adverte: essa atualização não é opcional — é a barreira de entrada para vender a safra a partir da implantação da reforma tributária.

Para o médio e grande produtor, isso significa investimento em software de gestão, treinamento de equipes e, em muitos casos, contratação de consultorias especializadas. Para o pequeno produtor, representa uma barreira de entrada significativa ao mercado formal.

Porém, vale ressaltar que, embora tenha mantido o prazo de 1.º de janeiro de 2026, o governo flexibilizou dois pontos relativos à nova obrigação acessória.

O primeiro ponto é que, por enquanto, não haverá rejeição automática das notas fiscais em que não estejam preenchidos os campos do IBS e da CBS. E o segundo, divulgado na última terça-feira (23), é que "não haverá aplicação de penalidades" a quem não preencher os campos "até o primeiro dia do quarto mês após a publicação dos regulamentos do IBS e da CBS". Tais regulamentos ainda serão publicados.

De todo modo, especialistas sugerem que os contribuintes busquem cumprir a obrigação integralmente desde o início.

Cronogram da reforma tributária até 2033

A CBS entra em vigor com força em 2027, com alíquota entre 8% e 9%, substituindo PIS e Cofins. Entre 2029 e 2032, o IBS será implementado gradualmente, reduzindo ICMS e ISS de forma proporcional. O sistema completo estará em vigor em 2033.

Apesar do prazo longo, a adaptação precisa começar agora. Produtores devem atualizar sistemas de gestão, cadastrar produtos nas novas bases tributárias e regularizar pendências com a Receita Federal ainda em 2025. Apesar das flexibilizações recentes, quem deixar para depois corre o risco de enfrentar problemas operacionais.

Digitalização forçada: CNPJ alfanumérico e nota fiscal eletrônica

A reforma tributária impõe uma digitalização obrigatória ao campo. Três ferramentas estruturam essa transformação:

  • CNPJ alfanumérico: novo identificador para produtores rurais pessoa física que permite controle fiscal digital sem exigir abertura de empresa.
  • Nota Fiscal Fácil (NFF): aplicativo móvel para simplificar a emissão de notas fiscais eletrônicas por produtores rurais. Funciona offline, aplica automaticamente as regras tributárias e dispensa certificação digital individual. A ferramenta busca reduzir a complexidade tecnológica para pequenos produtores, mas exige familiaridade mínima com celulares e tablets.
  • Provedor de Assinatura e Autorização (PAA): mecanismo que permite a sindicatos e cooperativas assinar digitalmente notas fiscais em nome de seus associados. Reduz custos com certificação digital individual, mas centraliza o controle operacional nessas entidades.

Essas ferramentas representam uma ruptura com práticas tradicionais. Produtores que operavam com documentação manual ou controles informais terão de profissionalizar sua gestão contábil. A digitalização não é opcional: sem emissão de notas fiscais eletrônicas, não há como comprovar créditos tributários nem realizar transações comerciais formais.

Implementação do CNPJ alfanumérico

O novo CNPJ alfanumérico será implementado no primeiro semestre de 2026, permitindo controle fiscal similar ao de empresas sem exigir que o produtor se registre como empresa. A Receita Federal utilizará esse cadastro para cruzar dados de faturamento. Produtores com faturamento acima de R$ 3,6 milhões serão obrigados a entrar no regime regular do IBS/CBS.

Para o pequeno produtor que utiliza o aplicativo Nota Fiscal Fácil ou emissores das Secretarias de Fazenda, a atualização será automática. O sistema já está sendo ajustado para contemplar os novos campos a partir de janeiro, garantindo conformidade sem custo adicional de software, segundo a CNA.

O produtor não sentirá o peso total da carga tributária em 2026, mas sentirá o peso da burocracia digital. A gestão fiscal profissional torna-se pré-requisito operacional, pois a tolerância com controles amadores na emissão de documentos será zero.

Fim de isenções e o risco do Imposto Seletivo criado com a reforma tributária

A reforma tributária elimina benefícios fiscais que sustentaram a competitividade do agronegócio brasileiro por décadas. O impacto mais significativo recai sobre os insumos agrícolas.

Insumos saltam de isenção total para 10% de tributação

Fertilizantes, defensivos e máquinas agrícolas, que hoje têm alíquota zero de PIS/Cofins, passarão a ser tributados. Mesmo com o redutor de 60% sobre a alíquota padrão de IBS/CBS, a carga efetiva sobre insumos deve ficar entre 10% e 11%.

Bianca Xavier, da FGV Direito Rio, explica o problema: muitos produtos terão tributação reduzida com a aplicação de um redutor sobre a alíquota padrão, mas serão afetados porque terão uma tributação maior do que hoje.

Sair de um sistema de isenção para um sistema tributado, ainda que com redutor, pressiona a margem de lucro em uma atividade em que os ganhos já são apertados. Para culturas de margem estreita, como grãos, esse aumento pode inviabilizar a atividade em regiões menos competitivas.

Fim de incentivos estaduais

Programas de incentivo fiscal estaduais, como diferimentos e créditos presumidos de ICMS, serão gradualmente extintos com a implementação do IBS. Estados que usavam esses mecanismos para atrair investimentos perderão essa ferramenta de política econômica.

O Imposto Seletivo como "carta branca" para sobretaxar o campo

O ponto de maior atrito político e econômico é a instituição do Imposto Seletivo (IS). Teoricamente desenhado para desestimular o consumo de produtos nocivos, ele é visto por juristas do setor como uma "carta branca" para sobretaxar o campo sob justificativas ambientais subjetivas.

O temor é que defensivos agrícolas e outros insumos essenciais sejam taxados de forma adicional, transformando o IS em uma "arma letal apontada contra o produtor rural, que não terá como se defender", nas palavras do tributarista Alessandro Batista, sócio do ABN Advogados. Se ocorrer, é mais um fator a encarecer a produção de alimentos na base.

Não cumulatividade, crédito presumido e o problema da informalidade

O princípio da não cumulatividade (sistema em que cada etapa da cadeia desconta os impostos já pagos) é central na reforma: cada elo da produção paga tributos apenas sobre o valor que agregou, abatendo o que foi pago anteriormente. Esse modelo funciona bem em cadeias formalizadas e integradas, mas enfrenta obstáculos estruturais no agronegócio brasileiro.

Informalidade impede recuperação de créditos e corrói margens

Grande parte dos fornecedores de insumos e serviços no campo opera sem emissão de notas fiscais. Produtores que compram de fornecedores informais não conseguem comprovar o pagamento de tributos e perdem o direito ao crédito tributário. Isso cria uma desvantagem competitiva em relação a produtores que operam em cadeias formalizadas.

Roberto de Lázari, da All Tax, argumenta que setores com múltiplas etapas e fornecedores informais enfrentam riscos reais na recuperação de créditos e erosão de margens — efeitos semelhantes aos observados em mercados com tributação fragmentada.

O dilema do crédito presumido

Produtores com faturamento anual abaixo de R$ 3,6 milhões podem optar por permanecer como "não contribuintes", regime que os isenta de recolher IBS/CBS. Nesse caso, seus compradores recebem um "crédito presumido" — um desconto fiscal que compensa a ausência de tributação na origem — para manter a competitividade de preço.

O problema é que esse crédito pode ser inferior ao valor real do tributo, tornando a compra de pequenos produtores menos atraente para grandes empresas e cooperativas. Bianca Xavier resume: se há duas opções de fornecedores e um está fora do regime e não gera crédito pleno, a preferência será por quem gera crédito completo.

Se o crédito concedido for baixo, a indústria (frigoríficos, tradings) preferirá comprar de grandes produtores que geram crédito "cheio", marginalizando o pequeno ou forçando-o a baixar seus preços para compensar o custo fiscal do comprador.

Acúmulo de créditos não ressarcidos

Produtores que exportam ou vendem para o mercado interno com alíquota zero acumulam créditos tributários que deveriam ser ressarcidos pelo governo. Historicamente, esse processo é lento e burocrático, comprometendo o capital de giro das empresas.

Lázari classifica o modelo brasileiro como um sistema que cria travas burocráticas: "O Brasil, em essência, caminha para um 'IVA seletivo', uma estrutura híbrida que, ao contrário do modelo europeu de devolução ágil de créditos, institucionaliza fricções."

A reforma não apresenta soluções para agilizar o ressarcimento, perpetuando um problema crônico do sistema tributário brasileiro.

Reforma tributária impõe custos de tecnologia e inteligência fiscal

A reforma tributária enterra o modelo de gestão amadora. A complexidade de operar dois sistemas simultaneamente (durante a transição de 2026 a 2032) e a necessidade de apuração rigorosa de créditos e débitos exigirão investimentos pesados em software e consultoria.

O custo imediato de tecnologia é incontornável. Felipe Azevedo Maia, da AZM Law, adverte: para evitar rejeição dos documentos fiscais a partir de janeiro de 2026, é essencial atualizar os sistemas de gestão (ERPs) ainda em 2025.

Essa atualização é um pré-requisito operacional obrigatório para qualquer produtor que queira vender a safra com a implantação da reforma tributária. O prazo original para a obrigação acessória de preencher os campos de IBS e CBS é 1.º de janeiro – mas, como informado acima, o governo flexibilizou o cumprimento da exigência nas últimas semanas, estabelecendo que em um primeiro momento não haverá rejeição automática de notas nem penalização do contribuinte que descumprir a obrigação.

Para o médio e grande produtor, isso significa investimento em software de gestão, treinamento de equipes e, em muitos casos, contratação de consultorias especializadas. Para o pequeno produtor, representa uma barreira de entrada significativa ao mercado formal.

Inteligência fiscal como questão de sobrevivência

A reforma redistribui vantagens competitivas de forma desigual. Roberto de Lázari, da All Tax, argumenta que setores com múltiplas etapas e fornecedores informais enfrentam riscos reais na recuperação de créditos e erosão de margens — efeitos semelhantes aos observados em mercados com tributação fragmentada. Isso exigirá estruturas corporativas sofisticadas que o pequeno e médio produtor hoje não têm, ampliando o fosso competitivo no setor.

A não cumulatividade transformará o crédito tributário em moeda de troca. Quem não tiver gestão fiscal profissional para apurar e repassar esses créditos perderá competitividade de preço na venda final. O sistema pune a desorganização e privilegia as grandes estruturas corporativas.

Pejotização forçada

A reforma empurra o produtor rural para a constituição de pessoa jurídica, não apenas para fins de controle, mas como defesa patrimonial. Segundo Batista, a tributação sobre rendimentos superiores a R$ 50 mil mensais exigirá a adoção de estruturas societárias mais sofisticadas. "A figura do produtor pessoa física tende a perder espaço no futuro próximo."

Além disso, a tributação sobre lucros e dividendos corroerá os ganhos finais da atividade, reduzindo a rentabilidade líquida do negócio rural.

Vencedores e perdedores: quem ganha e quem perde com a reforma tributária

Os especialistas apontam que a reforma tributária não afeta todos os produtores de forma homogênea. A capacidade de adaptação tecnológica e a escala de produção definem quem sairá fortalecido e quem enfrentará dificuldades.

  • Grandes produtores e empresas integradas: Saem em vantagem. Já têm sistemas de gestão digital, equipes contábeis estruturadas e capacidade de investimento em tecnologia. Operam em cadeias formalizadas, facilitando a recuperação de créditos tributários. A reforma pode até beneficiá-los ao reduzir a concorrência de pequenos produtores que não conseguirem se adaptar.
  • Pequenos produtores: Saem em desvantagem. Enfrentam barreiras operacionais imediatas (atualização de ERPs, digitalização de processos) e riscos estruturais de longo prazo. O crédito presumido pode ser insuficiente para manter competitividade, resultando em exclusão do mercado ou pressão para reduzir preços.
  • Cooperativas e sindicatos rurais: Ganham relevância estratégica. O Provedor de Assinatura e Autorização (PAA) permite centralizar a emissão de notas fiscais para associados, reduzindo custos individuais. Cooperativas bem estruturadas tornam-se intermediárias essenciais para pequenos produtores.
  • Fornecedores de insumos e tecnologia: São os grandes vencedores. A digitalização obrigatória cria demanda por softwares de gestão (ERPs), certificação digital, consultorias contábeis e treinamentos. Essas empresas terão um mercado em expansão nos próximos anos.
  • Receita Federal: Amplia seu poder de fiscalização. A digitalização completa permite rastreamento em tempo real de transações, reduzindo margem para sonegação e informalidade.