Alunos de escola pública do Distrito Federal: crianças são vítimas do tráfico.
Alunos de escola pública do Distrito Federal: crianças são vítimas do tráfico. (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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Os recentes confrontos entre a polícia e o tráfico despertaram, como sempre, o sentimentalismo da esquerda. De repente, os mesmos que relativizam o crime e zombam da moral cristã aparecem citando o Evangelho, exaltando a família e afirmando: “Mas os traficantes têm mãe, têm alma!” Como não lembrar daquela velha frase atribuída a Chesterton: “O verdadeiro soldado não luta porque odeia o que está diante dele, mas porque ama o que está atrás dele”? Quer dizer, toda vida humana tem dignidade, nenhuma pessoa sensata deve celebrar a morte, mas isso não significa que certos combates não precisem ser travados. Eles devem ser, não por ódio ao inimigo, mas por amor ao seu povo, àqueles que o inimigo ameaça.

O grande erro do pacifismo é crer que dar uma flor fará um bandido largar a arma. O bandido é bandido justamente porque não dialoga com a linguagem do amor universal. Sua lógica é outra, feita do terror e da dominação. E os que mais sofrem são os inocentes, sobretudo as crianças. Não apenas por sua fragilidade física, mas porque ainda não têm o eu consolidado, a estrutura interior que permite reabsorver as circunstâncias — isto é, compreender que não se vive num mundo imaginário do “como as coisas deveriam ser”, mas num mundo concreto, que precisa ser enfrentado com criatividade e coragem, para não se tornar simples produto do meio. Agora imagine crescer onde o seu meio é o crime organizado, sem esse centro de gravidade moral bem desenvolvido, sem essa consciência de si que distingue o homem do meio que o corrompe.

Como pensar em termos abstratos pode soar vago, quero trazer uma referência da cultura contemporânea. Quem acompanha meus textos aqui na Gazeta do Povo já sabe o quanto gosto de estabelecer paralelos entre o presente e os clássicos. Já comparei, por exemplo, a cegueira voluntária do brasileiro diante da corrupção das instituições políticas e jurídicas ao mito egípcio de Ísis e Osíris. Mas hoje quero fazer algo diferente e recorrer à cultura juvenil atual. É uma maneira de acessar o imaginário coletivo, de usar as imagens e símbolos que moldam o nosso tempo, sem ficarmos presos às limitações dos fatos cotidianos. Afinal, não podemos compreender as motivações psicológicas de um traficante real se não conhecemos sua história íntima; já na ficção, temos todos os dados significativos, com início, meio e fim.

Pois bem, falo de “Jojo”, onde a história de Bruno Bucciarati mostra como o tráfico corrompe a pureza das crianças. Ele cresceu num lar simples e tranquilo, ao lado do pai pescador, até que a mãe decide abandonar a família em busca de uma “vida melhor” na capital. Diante disso, Bucciarati toma a decisão de ficar com o pai. E esse gesto, aparentemente banal (simplesmente ficar com o pai ou a mãe), já revela que ele tinha um grande senso de honra: Bucciarati não escolheu o que era conveniente a si mesmo, mas quis ficar por ver como o pai estava mais vulnerável e triste. Ele era um menino diferenciado.

Mas a vida no interior nem sempre é uma pintura romântica e kitsch. A máfia começa a se infiltrar na região, seu pai é brutalmente ferido e o ideal de justiça do menino se quebra, pois a realidade é mais efetiva do que as suas nobres intenções. O que ele poderia fazer? Denunciar à polícia? De nada adiantaria. A autoridade já havia se tornado um teatro diante do poder crescente da máfia, que ditava as regras e controlava a região. É assim que o menino, outrora bom e idealista, decide ingressar nela. Ele me faz lembrar daquelas máximas populares: “Se não pode vencê-los, junte-se a eles.” “É mais seguro apertar a mão do diabo do que virar-lhe as costas.” Essa é a lógica de muitas pessoas dessas comunidades.

Mas a história de Bucciarati mostra algo interessante: quem tenta angariar poder em meio à corrupção moral não tarda para ser traído. Afinal, quando você está cercado de pessoas que não têm senso de honra, basta atrapalhar seu projeto de poder para ser jogado fora. Quem vive entre traidores, cedo ou tarde, é traído também.

Como ele percebe isso? Quando recebe a missão de escoltar a filha do chefe da máfia até o próprio pai. No início, ele imagina que se trata de uma busca de reconciliação; talvez o velho queira se reaproximar da menina. Porém, no meio do caminho, a “missão” se mostra uma emboscada. O pai mandara buscá-la apenas para matá-la, com medo de que a filha fosse usada como isca contra ele. Logo o senso moral de Bucciarati desperta e ele decide salvar a menina. 

Bucciarati sabe o que está em jogo: perderá o prestígio, a fortuna e, muito provavelmente, a vida. Enfrentar um homem poderoso, cercado de capangas e influência, é assinar a própria sentença. Mesmo assim, ele não hesita. Prefere morrer livre a viver servindo um criminoso sem coração. A máfia o corrompeu, mas não o venceu por completo. Há um ato de redenção. Mas isso porque Bucciarati tem personalidade forte. E as crianças que não têm? Se crescessem em um bom ambiente, talvez se tornassem trabalhadores honestos; mas, cercadas pela marginalidade, acabam moldadas pela própria miséria. E são elas que merecem nossa compaixão e nossa luta.