Líderes do Mercosul e da União Europeia anunciaram acordo em 6 de dezembro de 2024. Um ano depois, medidas de livre comércio ainda não entraram em vigor.
Líderes do Mercosul e da União Europeia anunciaram acordo em 6 de dezembro de 2024. Um ano depois, medidas de livre comércio ainda não entraram em vigor. (Foto: Sofía Torres/EFE)

Ouça este conteúdo

Embora as negociações técnicas tenham sido encerradas em dezembro do ano passado, com direito a anúncio pelos líderes dos dois blocos, o acordo comercial entre o Mercosul e a União Europeia continua sem gerar efeitos práticos. Mesmo com a expectativa de assinatura oficial do tratado marcada para o próximo dia 20 de dezembro, a implementação efetiva das medidas não será imediata.

Há ainda pontos de atrito que podem dificultar a conclusão do acordo. A aprovação recente, por parte dos europeus, de salvaguardas que afetam o agronegócio brasileiro e dos outros países sul-americanos, pode criar embaraços para a assinatura.

Nesse sentido, a França se manifestou no domingo (14) e afirmou que não é possível assinar um tratado que coloque em risco os agricultores franceses (veja os detalhes para a aprovação e assinatura do tratado mais adiante).

Se, mesmo com essas divergências o acordo vier a ser aprovado, a entrada em vigor das reduções tarifárias levará meses e, em aspectos mais amplos do tratado, poderá demorar anos para se concretizar integralmente. A principal causa são as complexidades burocráticas e as exigências de ratificação parlamentar de ambas as partes.

Cláudio Finkelstein, professor de Direito Internacional da PUC-SP e sócio do Finkelstein Advogados, afirma ter poucas expectativas a respeito de impactos mais imediatos da assinatura do tratado. “Exatamente um ano atrás, quando firmado o acordo, as expectativas realmente existiam. Havia um interesse recíproco muito grande, mas os entraves que então existiam continuam existindo na mesma proporção", afirma. 

Ele avalia que até existem mais incentivos hoje, mas nada que já tenha se mostrado relevante, em face do embate de interesses entre os integrantes europeus. Ele cita França e Polônia, por exemplo, que se opõem ao acordo em virtude de preocupações ambientalistas e do agronegócio, principalmente. 

Por outro lado, observa que surge uma nova frente, da parte de Espanha e Alemanha, que se contrapõe a essa visão e que deseja contra-atacar as medidas adotadas pelos Estados Unidos e que afetam o comércio não só da União Europeia, como também do Brasil.

“Então, seria uma espécie de equilíbrio, um balanço de forças que um bloco de 700 milhões de pessoas que congrega praticamente 20% do PIB do mundo, poderia criar, levando a uma expectativa melhor", afirma Finkelstein. Mesmo assim, ele diz que não consegue ver uma força motriz que leve as partes a efetuar esse acordo no curto prazo.

Por outro lado, Arno Gleisner, diretor de Comércio Exterior da Câmara de Comércio, Indústria e Serviços do Brasil (Cisbra), avalia que há condições para que a assinatura de fato seja efetuada no curto prazo. Ele cita a recente aprovação, pela Comissão Europeia, dos mecanismos de salvaguarda para importações agrícolas, o que reduz a resistência dos seus agricultores. 

“Na implementação do acordo temos expectativas muito positivas. Em todos os acordos, para que sejam favoráveis às partes envolvidas, resultam setores ganhadores e perdedores. Na Cisbra, entendemos que o resultado líquido será muito favorável para as economias dos países envolvidos, tanto nos fluxos comerciais como nos investimentos", concluiu. 

Quais são os próximos passos para a aprovação do acordo

A conclusão das negociações em dezembro passado, anunciada após 25 anos de tratativas, marcou apenas o fim da etapa técnica. Para que o livre comércio opere de fato entre os blocos, o texto ainda precisa superar uma bateria de aprovações e ratificações.  

Na próxima quinta-feira (18), o Conselho Europeu irá decidir sobre o acordo, onde será necessária a aprovação de 15 dos 27 países (55%), representando pelo menos 65% da população total do bloco. Antes disso, nesta terça (16), caberá ao Parlamento Europeu votar o mecanismo de salvaguardas, que foi recentemente aprovado em sua Comissão de Comércio Internacional (leia mais adiante).  

Caso as salvaguardas e o acordo sejam validados em ambas as instâncias, as expectativas são de que o tratado seja assinado durante a próxima reunião de Cúpula do Mercosul, no sábado, dia 20 de dezembro, em Foz do Iguaçu.

O Brasil ocupa a presidência do bloco e conta com a presença da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para sagrar a assinatura ainda este ano. Se confirmado o acerto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é quem assinará em nome do Mercosul.

Em novembro, Lula reconheceu que ainda haverá muito por fazer após a eventual assinatura do tratado: "É uma coisa extremamente importante, possivelmente seja o maior acordo comercial do mundo. E aí, depois que assinar o acordo, vai ter ainda muita tarefa para a gente poder começar a usufruir das benesses desse acordo, mas vai ser assinado”.

Acordo formaria bloco de 700 milhões de pessoas e PIB de US$ 22 tri

Os dois blocos, que reúnem cerca de 700 milhões de pessoas e um Produto Interno Bruto (PIB) de US$ 22 trilhões, precisam firmar dois textos: um primeiro de natureza econômica-comercial, que é de vigência provisória – Acordo Comercial Provisório UE-Mercosul – e um acordo completo, o Acordo de Parceria UE-Mercosul. 

A UE é o segundo parceiro comercial do Brasil, atrás somente da China, com um volume de trocas de US$ 95,5 bilhões, ou 15,9% do comércio exterior brasileiro. Em 2024, o Brasil exportou US$ 48,3 bilhões para países da União Europeia e importou US$ 47,3 bilhões, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.

Se o acordo for aprovado no Conselho Europeu e assinado na Cúpula do Mercosul, sua parte comercial – incluindo tarifas, regras de comércio e concessão de acesso a mercados – poderá entrar em vigor provisoriamente.

A validação definitiva, contudo, com a definição de competências mistas e regras ambientais, por exemplo, depende da aprovação individual dos parlamentos dos 27 países-membros da União Europeia. Da mesma forma, nos países do Mercosul, o acordo integral precisará ser aprovado pelos parlamentos de cada integrante para ser ratificado. 

VEJA TAMBÉM:

Processo de aprovação expôs falta de consenso europeu

O processo de tramitação explicitou posições divergentes dentro do bloco europeu. De um lado, nações com perfil mais liberal e industrializado, como Alemanha, Croácia, Bélgica, Suécia, Espanha e República Tcheca, pressionam pela celeridade do acordo.

O chanceler alemão, Olaf Scholz, tem sido uma das vozes mais ativas a favor da parceria, visando a abertura de mercados para a indústria germânica e o acesso a matérias-primas estratégicas da América do Sul.

Por outro lado, o protecionismo agrícola dita a resistência liderada por França e Polônia. O governo francês, historicamente sensível ao lobby de seus agricultores — que dependem fortemente de subsídios estatais —, resiste à competitividade do agronegócio brasileiro. A Polônia segue linha similar, alegando que a entrada de produtos sul-americanos poderia desestabilizar a produção local.

A Itália e a Áustria também demonstraram reticência em momentos distintos das negociações, evidenciando como interesses corporativistas locais muitas vezes se sobrepõem à eficiência econômica global.

Em relação aos países do Mercosul, Gleisner comenta que o clima é de entusiasmo, inclusive na maioria das empresas e entidades empresariais e de trabalhadores. Do ponto de vista das estratégias dos integrantes do bloco sul-americano, trata-se também de uma redução da dependência de grandes mercados como Estados Unidos e China, abrindo possibilidades de diversificação de parcerias.

Aprovação de salvaguardas visa destravar acordo

Para vencer a resistência interna e aplacar os ânimos dos setores protecionistas, a Comissão de Comércio Internacional do Parlamento Europeu aprovou no último dia 8 de dezembro um novo mecanismo bilateral de salvaguardas – o Conselho da União Europeia já havia oficializado o respaldo a essa regulação em novembro. 

A medida funciona como um freio de emergência: caso o aumento das importações de produtos do Mercosul cause, ou ameace causar, prejuízos aos produtores europeus, a UE poderá suspender as preferências tarifárias e retomar a cobrança de impostos de importação.

A versão aprovada das salvaguardas também simplificou o processo para que o mecanismo seja acionado, ao reduzir o prazo de duração de investigações e acelerar eventuais medidas de proteção. 

As salvaguardas preveem ainda que seja criado um fundo de compensação financeira para agricultores europeus que aleguem perdas decorrentes da concorrência sul-americana. Na prática, trata-se de medida que visa garantir a sobrevivência de setores da economia europeia que venham a ser afetados pela produtividade e eficiência do campo brasileiro e de seus parceiros do Mercosul.

De acordo com Arno Gleisner, a aprovação das salvaguardas para a agricultura europeia foi um compromisso para destravar o acordo. “Diminui um pouco as expectativas para o agronegócio do Mercosul, mas este ainda continuará com um ótimo potencial, decorrente do seu volume de produção, competitividade e interesses de importadores consumidores europeus", avalia.

Mesmo com as salvaguardas, a França tem pressionado suas contrapartes europeias para adiarem a reunião da Cúpula do Mercosul ou a previsão de assinatura do acordo. O vice-presidente e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, Geraldo Alckmin, diante desta possibilidade, afirmou que, se não for assinado agora, o acordo será assinado em breve.

Salvaguardas podem afetar produtos brasileiros

Por outro lado, há também a avaliação de que a blindagem oferecida pelas salvaguardas pode colocar em risco as expectativas e oportunidades de exportações do agronegócio nacional. Cláudio Finkelstein afirma que o mecanismo pode mudar toda a mecânica do acordo, tornando-o desinteressante.

As avaliações iniciais são de que produtos como carne bovina, aves, açúcar e etanol — que são alguns dos pilares da competitividade brasileira — acabam ficando sujeitos a suspensões abruptas caso ganhem fatia de mercado expressiva na Europa.

Nesse sentido, a medida cria um ambiente de insegurança jurídica para o exportador brasileiro, na medida em que se vê passível de perder investimentos feitos para o aumento da produção caso tenha as portas do mercado europeu fechadas sob alegações de desequilíbrio de mercado.

Ainda que o governo brasileiro tenha aceitado as condições a fim de não perder o "timing" político do acordo, as salvaguardas não deixam de representar uma vitória do protecionismo de países como França e Polônia. O resultado é que o acordo, embora possa se mostrar positivo no longo prazo para a modernização econômica, já nasce com travas que podem vir a limitar o potencial de geração de riqueza e eficiência em alguns setores.

VEJA TAMBÉM:

Terras raras e energia são setores que podem ser muito beneficiados

Mesmo que as salvaguardas possam afetar as exportações agrícolas do Mercosul para a UE, há outros setores que podem se beneficiar. Arno Gleisner explica que, no acordo, já foram negociados prazos para a entrada em vigor das tarifas reduzidas para um conjunto de itens.

Ao todo, as projeções são de que o acordo possa reduzir os impostos de comercialização de 91% dos produtos que integram as trocas entre a UE e o Mercosul. 

O presidente da Cisbra aponta que alguns setores podem receber uma atenção imediata em decorrência de movimentos geopolíticos que envolvem outros blocos. “Terras raras e tecnologia são bons exemplos, podendo no curto prazo gerar grandes investimentos”, afirma.

Claudio Finkelstein também pontua que o Mercosul é muito forte no setor energético, com a produção de óleo, xisto e outros minerais. “O Brasil pode ser um grande exportador desses produtos", disse. Ele ainda destaca amplas possibilidades para a indústria aeroespacial, na qual o Brasil teria muito a ganhar. As indústrias de vestuário, química e farmacêutica, fortes na economia europeia, também podem se beneficiar.

O professor, no entanto, avalia que ainda é cedo para avaliar se o acordo tem amplitude suficiente para complementar as economias nacionais, principalmente em face dos impactos causados pelos aumentos tarifários e pelo redimensionamento da globalização imposto pelas políticas tarifárias do governo Trump. Ele entende que, mesmo assim, o acordo certamente teria um impacto positivo tanto para o Mercosul quanto para a União Europeia.