Documentário "O Falso Juiz" está disponível no YouTube
Documentário "O Falso Juiz" está disponível no YouTube (Foto: Divulgação)

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O Falso Juiz: A História de uma Nação nas Mãos de um Psicopata (The Fake Judge, no título original), é como o jornalista português Sérgio Tavares intitulou seu documentário disponível gratuitamente no YouTube. A promessa do título é clara e perturbadora: apresentar um retrato psicológico de um juiz. No caso, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.

A abertura do filme reforça essa expectativa, com Moraes sendo apresentado como o antagonista central, a figura pela qual tudo se articularia. Entretanto, não demora para que isso se dilua em uma narrativa que não retorna ao seu perfil psicológico e passa a empilhar múltiplas histórias entrelaçadas sobre a política brasileira, como a soltura de Lula, o governo Bolsonaro, a pandemia, as eleições, o 8 de janeiro de 2023. Moraes continua presente, mas como uma peça dentre outras, com suas ações não parecendo definir o jogo de tabuleiro que se revela mais complexo.

Por que o ministro seria um psicopata? A obra não responde, apostando nesta conclusão pela somatória de fatos mostrados e associações que tece entre eles, cujas conexões na sua maioria carecem de elos explícitos. São mais sugeridas, inferidas, deixadas para que o espectador as complete pela suposição de uma mesma finalidade subjacente que, no entanto, também não é explicitada.

Essa lacuna entre o que o título promete e o que o filme entrega não é motivo, porém, para descartar a obra. Deixando de lado a pretensão de diagnosticar e culpar Alexandre de Moraes, os fatos mostrados são significativos por si e o título apelativo parece revelar mais a urgência política de solução para o que foi retratado do que uma investigação jornalística. No fim das contas, Sergio Tavares conta uma história que é maior do que os limites do quadro que preparou para contê-la.

I. "The Fake Judge", entre a Investigação e a Persuasão

O próprio jornalista se coloca como um dos protagonistas do filme, mostrando o que lhe motivou a fazê-lo e qual seu propósito: dar a conhecer ao mundo o que se passa no Brasil. O resultado é fiel a este propósito, apresentando uma quantidade impressionante de fatos graves que, tirando os brasileiros, dificilmente algum estrangeiro tinha conhecimento, muito menos como, vistos em conjunto, revelam algo de muito errado acontecendo no Brasil.

Entretanto, a profusão de fatos e histórias paralelas força o sacrifício das conexões entre eles, condenando o filme a uma apresentação superficial de cada tópico. Uma estrutura serializada, de três ou quatro episódios de 40 a 50 minutos cada, teria sido melhor. Cada episódio teria uma questão central clara em vez de misturá-los em um caldeirão de 150 minutos, como foi feito. Com isso, permitiria um aprofundamento temático sem fadiga cognitiva, com elos mais explícitos entre fatos dentro de cada episódio, permitindo que o espectador processasse melhor o que viu, possibilitando também uma revisita facilitada.

Alexandre de Moraes está no foco em "The Fake Judge"Alexandre de Moraes está no foco em "The Fake Judge" (Foto: Andre Borges/EFE)

Se a intenção era, pelo acúmulo factual, por si só, produzir o efeito psicológico do espanto, deixando no espectador a sensação de ser arrastado por uma avalanche de fatos, funcionou. Por outro lado, a acumulação factual sem uma estrutura narrativa clara torna a memorabilidade praticamente impossível. O espectador sai do filme com impressões, não com argumentos. Muitos dos fatos apresentados simplesmente se evaporam da memória enquanto o filme ainda está em andamento. O que fica é uma sensação de indignação e urgência, mas não a clareza que um documentário investigativo deveria oferecer.

O que parece é que Tavares procura ser mais persuasivo do que investigativo, com sua obra funcionando melhor como ferramenta de provocação do que como instrumento de esclarecimento. O que nos leva à próxima pergunta: em um documentário com intenção explícita de levar a mais pessoas o conhecimento sobre fatos, a intenção política explícita de persuasão não deveria ser mais contida, talvez evitada?

Por exemplo: era necessário mergulhar em tantas controvérsias da época da pandemia que não parecem relacionadas com a linha central do próprio documentário? Por vezes, ficou parecendo ser mais um manifesto do jornalista sobre as polêmicas daquela época do que um documentário sobre a história recente do Brasil, menos ainda sobre um “falso juiz”.

Mas aqui temos um paradoxo produtivo: o documentário fracassa quanto à clareza, mas é bem sucedido como interpelação. Interpelar é provocar, é exigir explicações de forma veemente. No caso, é forçar o espectador a confrontar uma realidade incômoda pela simples acumulação de fatos sem que ele tenha tempo de se acomodar em uma explicação, qualquer que seja. É como se dissesse: "Olhe para tudo isso. Junto. Agora. É preciso fazer algo, você não fará nada?" Essa é a força deste documentário. E talvez isso seja mais honesto do que uma narrativa bem organizada que falsamente sugere que temos compreensão completa de algo que é, afinal, irredutivelmente complexo.

II. O Melhor de "The Fake Judge"

Mas há um momento em que o filme deixa de ser retórica e se torna cinema. É quando Tavares cede espaço aos acusados pelo 8 de janeiro de 2023. Menos para defendê-los, mais para deixá-los falar. Esses depoimentos funcionam de forma distinta do resto do documentário. Enquanto a maior parte da obra acumula fatos, análises, conexões sugeridas, esse segmento oferece subjetividade bruta. Pessoas contando suas histórias, explicando suas motivações, descrevendo como foram presos, como não foram processados e julgados, mas condenados de forma direta e peremptória.

O poder desses depoimentos não reside em sua capacidade de provar que houve injustiça. Reside em sua capacidade de humanizar pessoas que foram reduzidas a figuras abstratas na narrativa pública brasileira. Durante meses, os brasileiros viram imagens de invasão, depredação e caos. Aquelas pessoas viraram "golpistas", "terroristas", "fascistas", pessoas inimigas da democracia que devem ser punidas. Mas o documentário oferece algo que a narrativa pública brasileira na grande imprensa, na prática, censurou: faces, nomes, histórias pessoais. Oferece contexto subjetivo que a retórica política escondeu.

III. Conclusão

Enfim, o documentário não cumpre o que promete em seu título. Não oferece um retrato psicológico de um suposto psicopata. Também não oferece uma narrativa bem organizada sobre os fatos políticos brasileiros que acumula. Mas força o espectador a confrontar fragmentos de uma realidade política tão complexa, tão contraditória, tão repleta de abusos simultâneos que nenhuma narrativa única conseguiria abarcá-la.

Neste sentido, Tavares consegue realizar o que se propõe: fazer o mundo conhecer o que se passa no Brasil. Não com clareza. Mas com o senso de urgência de que algo precisa ser feito a respeito. E talvez, neste momento, seja o que realmente importa, despertar essa urgência, mesmo diante da impotência e da desorientação.

  • O Falso Juiz: A História de uma Nação nas Mãos de um Psicopata
  • 2025
  • 145 minutos
  • Classificação indicativa livre
  • Disponível no YouTube

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