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Há quase três décadas, o Brasil vem sendo governado sem nenhum plano de desenvolvimento socioeconômico, ambientalmente saudável, visando à inclusão social de milhões de trabalhadores e à redução das inaceitáveis desigualdades regionais, sociais, raciais, habitacionais e educacionais. Em todas as áreas essenciais – educação, saúde, saneamento básico, segurança pública e habitação – as carências são enormes e crescentes.
Para mudar essa situação, o país necessita, antes de mais nada, sepultar a conveniente cultura de se falar apenas em Produto Interno Bruto (PIB), como se todas as mazelas nacionais fossem resultado somente da economia. O ser humano, o cidadão brasileiro, requer cuidados permanentes e maiores do que o PIB. Por isso, é fundamental discutir os principais indicadores sociais, esses, sim, o espelho real da condição de vida da população.
O quadro atual da nação é incompatível com a posição de 10ª economia no ranking mundial, pois de nada adianta se o resultado econômico-financeiro não se refletir positivamente na qualidade de vida da população. Os recursos financeiros do país são enormes. A questão de maior importância a ser analisada é a ausência de um plano de metas e a prática já rotineira de governo de coalizão – mais parecida com governo de colisão, salvo pela velha política do toma-lá-dá-cá –, que tem favorecido em muito o gigantismo do Estado, os desperdícios, a corrupção e a impunidade, levando à precarização dos serviços oferecidos ao povo brasileiro.
Somente a clareza, a absoluta transparência e a discussão profunda de um plano verdadeiro de governo podem resgatar o país e conduzi-lo a um novo período de círculo virtuoso de desenvolvimento
O Brasil parece acostumado a ter um governo alicerçado somente no carisma de uma única pessoa, ignorando que, sem um plano de metas qualitativas e quantitativas e com prazos definidos, esse país gigante, com território de 8,5 milhões de km², população de 213 milhões de pessoas e economia de US$ 2,189 trilhões (o equivalente a cerca de R$ 12 trilhões/ano), jamais conseguirá galgar os degraus que o levem a um novo patamar de desenvolvimento e bem-estar social.
O Brasil anseia ver candidatos ao cargo de presidente da República que se apresentem com plano de metas, discutidos e sabatinados a respeito em horário eleitoral durante o período de campanha por rádio e televisão. Muito diferente do que se vê hoje: um emaranhado de promessas sem a correspondente demonstração de como será possível cumpri-las.
Somente a clareza, a absoluta transparência e a discussão profunda de um plano verdadeiro de governo podem resgatar o país e conduzi-lo a um novo período de círculo virtuoso de desenvolvimento. Sem isso, nunca conseguiremos reduzir as gritantes desigualdades regionais, sociais, raciais e educacionais, com lastro nas verdades numéricas, abandonando-se de vez as inverdades e narrativas inescrupulosas que têm levado à estagnação dos indicadores sociais e fazendo com que o crescimento econômico seja espasmódico e pífio.
A verdadeira situação do país precisa vir à tona para todos os cidadãos, a fim de se criar uma consciência crítica, baseada em indicadores oficiais. Começando pelo PIB, comparando-se o nacional com o dos países membros dos Brics e do mundo no período entre 2010 e 2024. Nesses 14 anos, o PIB do Brasil teve crescimento negativo de 1,40%, passando de US$ 2,210 bilhões/ano em 2010 para US$ 2,179 bilhões/ano em 2024. Enquanto isso, o PIB da China cresceu 200%, o da Índia, 129%, o da Rússia, 38% e o do mundo, 65%.
Entretanto, é preciso analisar também o PIB per capita e, nesse aspecto, o desempenho do Brasil foi ainda pior, caindo 10,16% nos últimos 14 anos. Foi de US$ 11.409/ano por habitante para US$ 10.249/ano por habitante, segundo dados do Banco Mundial. Enquanto isso, em igual período, o PIB per capita/ano da China cresceu 179%, o da Rússia aumentou 95%, e, no mundo, foi 41% maior. Não é difícil aferir em quais países esses indicadores tiveram reflexos mais positivos na população.
Os números oficiais de 2024 mostram que 35,6% dos brasileiros tinham renda mensal bruta de até R$ 1.412,00, o equivalente a US$ 262,00. Outros 31,6% dos brasileiros viviam com renda bruta mensal entre R$ 1.413,00 e R$ 2.826,00, o correspondente entre US$ 263,00 e US$ 512,00. E, ainda, 22,8% dos brasileiros têm renda bruta mensal entre R$ 2.827,00 e R$ 3.500,00, algo entre US$ 513,00 e US$ 648,00. Ou seja, a imensa maioria (90%) da população ganha até R$ 3.500,00 por mês, o equivalente a US$ 648,00. Em contrapartida, os 10% mais ricos têm renda mensal superior a US$ 54.000,00. Uma discrepância absurda.
Um outro dado mostra bem como as ações sem planejamento dos governos não alcançaram a população. É o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que mede o desenvolvimento de um país, considerando três fatores: saúde, educação e padrão de vida. No ranking da Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil ocupava a 73ª posição em 2002, caindo para o 84º lugar em 2024. Uma queda acentuada em apenas 22 anos.
No coeficiente Gini, índice internacional que quantifica a desigualdade na distribuição de renda ou riqueza de uma população, a situação brasileira também é muito ruim: apenas a 53ª posição entre os 58 países estudados, ficando à frente apenas de países como Marrocos, Kuwait, Botsuana, Namíbia e África do Sul.
Nenhum país é capaz de se desenvolver sem educação universal e de qualidade. Entretanto, nessa área o Brasil está reprovado. É o que mostra o resultado do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, estudo comparativo internacional trienal da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre o desempenho dos estudantes na faixa etária dos 15 anos, idade que marca o término da escolaridade básica. Nesse estudo, o Brasil fica abaixo da média dos 38 países da OCDE, atrás do México, Chile e Uruguai. No geral, está em 55º lugar e é o 15º mais mal avaliado em criatividade. Uma situação vexatória que se mantém há 15 anos. Falta gestão.
Há, ainda, uma outra questão a merecer atenção. O Brasil cobra muito em impostos, porém, entre os 30 países com maior carga tributária no mundo, é o que menos oferece retorno dos tributos à população, de acordo com o Índice de Retorno de Bem-Estar à Sociedade (IRBES), estudo pelo qual é avaliado como os países utilizam os recursos arrecadados para melhorar a qualidade de vida de seus habitantes. Amarga essa posição há 14 anos. Eis aqui uma equação socialmente injusta: apesar de registrar recorde de arrecadação em 2024, o Brasil não produziu melhorias em áreas essenciais como saúde, educação, infraestrutura e segurança pública.
Se o retorno à população é pífio, por outro lado a arrecadação só aumenta. Em 1988, a carga tributária do país representava 22,4% do PIB. Em 2024, essa relação cresceu para 32,3%, e a estimativa é chegar a 34,0% ao final de 2025. Até o ano passado, essa variação foi, portanto, de 44,2% e pode chegar a 51,7% em 2025, se confirmadas as expectativas.
Não existem motivos para o Brasil se orgulhar, porque seu PIB per capita, como já dito, é menor do que o dos principais países do Brics e também está abaixo da média de 191 países. Fica claro, portanto, que o problema da nação não é falta de recursos, mas sim de gestão e vontade política.
Também em nada colabora para mudar a realidade do país um mal que o Brasil não consegue extirpar: a corrupção. No Índice de Percepção da Corrupção de 2024, estudo feito pela Transparência Internacional, o Brasil registrou a pior nota e sua pior posição entre 180 países avaliados na série histórica. Ficou na 107ª posição, três colocações abaixo do índice de 2023. A queda nos últimos anos foi brutal, pois havia ficado na 69ª posição em 2012 e em 48º lugar dez anos antes, em 2002 (FHC).
É incrível que, diante de um quadro como esse, o governo ainda pretenda se sustentar apoiado na divisão do país – pobres x ricos –, mesmo aumentando tributos sob a propaganda de que ricos não gostam de pagar impostos, e ainda atribuindo a responsabilidade aos governos anteriores. É preciso lembrar, no entanto, que o partido do governo atual ficou no poder durante oito dos últimos quinze anos. Nesse período, somados aos oito anos dos dois primeiros mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2002–2010), foram implantados programas sociais como o Bolsa Família, auxílio-gás, Fies, BPC e Pé-de-Meia, necessários, mas que, ao não fixarem data para a exclusão dos beneficiados, criaram dependência e se constituíram em excelentes cabos eleitorais, sem, entretanto, resolver os problemas mais graves do país. Esses programas-meio transformaram-se em programas-fim, enquanto foram abandonados projetos infraestruturais e de geração de atividades econômicas, fundamentais e capazes de resultarem em ocupação de trabalho com remuneração muito mais adequada que a de hoje, na qual 35,6% da população ganha apenas um salário mínimo e 90% dos brasileiros têm vencimentos mensais de até 2,31 salários mínimos (R$ 3.500).
O Brasil possui um histórico de manipulações eleitoreiras que precisam ser banidas para não contaminar mais o processo democrático. Um exemplo foi a alteração da fórmula de reajuste do salário mínimo, implantada no final de dezembro de 2024 como uma boa notícia que, na verdade, reduziu o ajuste real do salário mínimo do trabalhador. Pela fórmula anterior, o salário mínimo de 2025 seria de R$ 1.530,88, mas com o novo modelo acabou fixado em R$ 1.518,00, ou seja, menos R$ 12,88 por mês no bolso do trabalhador. Em 2026, se mantida a metodologia antiga, o salário mínimo ficaria estipulado em R$ 1.661,88, porém a previsão é que fique em R$ 1.631,00. Nesse caso, o brasileiro estará perdendo R$ 30,88 todo mês. A situação se repetirá em 2027, quando o salário mínimo deverá ser fixado em R$ 1.747,00, mas poderia ser de R$ 1.780,08 se fosse aplicada a fórmula antiga. Prejuízo mensal de R$ 33,08 para o trabalhador. Promessa de picanha foi convertida em retirada de feijão e arroz da mesa do trabalhador.
Da mesma forma, como não houve reajuste no Bolsa Família desde março de 2023, valores substanciais foram retirados da mesa dos que mais precisam e dependem do governo para sobreviver. Em 2024, o valor médio do benefício foi de R$ 671,52/mês. Entretanto, deveria ter sido de R$ 678,00 se tivesse sido aplicado reajuste com base na inflação do período (2,47%). A diferença é ainda maior em 2025, pois ficou em R$ 671,52 o valor médio do benefício e deveria ser de R$ 720,92. A discrepância deve permanecer em R$ 671,52 em 2026, quando, se aplicado o reajuste pelo índice da inflação, deveria ser de R$ 841,74.
Obviamente, não se faz justiça social com medidas desse gênero, retirando benefícios via não correção pelo índice inflacionário, pensadas para garantir recursos destinados ao lançamento de programas novos, como o Gás do Povo, e para a correção da tabela de Imposto de Renda. Como inflação não é renda e a Constituição Federal de 1988 não prevê imposto inflacionário, aplica-se hoje punição dupla ao contribuinte. O correto, nesse caso, seria fixar os reajustes por legislação própria, tornando obrigatória a correção anual das tabelas do IR, com o que então se estaria praticando justiça tributária e afastando a esperteza de corrigir apenas nos anos das eleições.
A população precisa ser informada, claramente, de que o orçamento de 2025 prevê o aumento de tributos e de arrecadação de mais de R$ 96 bilhões no ano. Portanto, recursos existem. O que falta é coragem e atitude para reduzir privilégios e renúncias fiscais (gastos tributários que somam R$ 618 bilhões/ano, em flagrante desrespeito à Emenda Constitucional nº 109/2021) e para combater a corrupção com ações concretas, como a alteração legislativa para tornar imprescritíveis os crimes praticados contra a administração pública, bem como reduzir drasticamente o número de autoridades beneficiadas com o foro privilegiado.
O povo brasileiro precisa voltar a ser verdadeiramente prioridade dos governos, o que deixou de ser há décadas. A verdade, aos poucos, foi sendo substituída pela retórica; as ações espasmódicas e midiáticas tomaram o lugar do planejamento administrativo, e o radicalismo continua ganhando terreno. Enquanto toda essa situação perdurar, o país vai apenas patinar.
Samuel Hanan é engenheiro com especialização nas áreas de macroeconomia, administração de empresas e finanças, empresário e foi vice-governador do Amazonas (1999–2002). Autor dos livros Brasil, um país à deriva e Caminhos para um país sem rumo. Site: https://samuelhanan.com.br
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos