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Imagine o medo que os primeiros seres humanos não sentiram quando o que chamamos de outono avançava, o sol parecendo cada vez mais distante, as noites mais longas, com partes da terra cobrindo-se de neve. Até chegar a mais demorada das noites, ali pelo dia 21 de dezembro no hemisfério norte e 21 de junho no hemisfério sul, marco do início do que ainda não tinha nome, mas é o inverno.
É quando ocorre um solstício, cuja palavra vem da junção de Sol mais Sistere, significando “aquele que não se move”. E o sol parece mesmo parado no céu por estar no ponto mais distante da Terra, onde permanece durante alguns dias, quando então começa a retornar. Isso era tão impactante que não há registro de comunidade humana que não tenha ritualizado este evento.
A data dessas cerimônias era diferente, conforme se vivia no hemisfério norte ou sul, mas não sua razão de ser: da Saturnália romana ao Yule nórdico, do Dongzhi chinês ao Tōji japonês e mesmo o Makar Sankranti, dos hindus, todas, em sua essência, celebravam o retorno da luz, a renovação cíclica da natureza e a esperança de um novo ciclo de fertilidade.
São as festas no hemisfério norte, que acontecem em data próxima ao Natal, que os negacionistas de Cristo alegam que a Igreja teria “roubado” dos pagãos, já que existiam antes de Jesus e da data de seu nascimento ser estabelecida em 25 de dezembro. O termo “negacionista” não é usado aqui como chiste ou provocação, mas com precisão, pois é somente negando quem é Jesus Cristo que se poderia tentar equivaler dois fenômenos tão distintos e de grandezas cosmológicas incomparáveis.
Uma guinada cosmológica
O Natal não é uma celebração de um fenômeno da natureza, mas do nascimento de Jesus, o Cristo (em inglês, Christmas vem de “Missa de Cristo”). Foi algo radicalmente novo e inédito na história: a Encarnação do Verbo de Deus. Ou seja, foi a entrada do próprio Criador na sua criação, assumindo a condição de uma de suas criaturas, a humana. Eis uma novidade tão disruptiva e única que não há como comparar nem confundir o Natal com qualquer festividade anterior ou posterior.
Mas embora não seja a celebração de um fenômeno da natureza, a própria natureza participou do Natal. Naqueles dias, um evento celeste atípico não apenas chamou a atenção dos homens, mas os guiou para o lugar de nascimento de Jesus. Trata-se da famosa estrela a guiar os três reis magos em direção a Belém.
O Papa Bento XVI, em seu livro “A Infância de Jesus”, trata não apenas da dimensão teológica dessa estrela, mas também da astronômica, citando várias fontes confirmando o cálculo de Johannes Kepler, que concluiu que “na passagem entre os anos 7 e 6 a.C. – considerado hoje, como se disse já, o ano provável do nascimento de Jesus –, se verificou uma conjunção dos planetas Júpiter, Saturno e Marte”.
Isso teria criado um brilho mais intenso que confirmaria a realidade material da “estrela” bíblica. E a referência aos anos 7 e 6 a.C. demonstra que a definição da data do Natal foi por razões teológicas e não por estratégia de conversão. O 25 de dezembro, aliás, foi estabelecido gradualmente pela tradição cristã nos primeiros quatro séculos, a partir de diversos cálculos teológicos.
Mas, para os homens daqueles tempos, “os corpos celestes eram considerados como forças divinas que decidiam o destino dos homens. Os planetas têm nomes de divindades. Segundo a opinião de outrora, aqueles dominavam de alguma forma o mundo, e o homem devia procurar pôr-se de acordo com tais forças”.
Ou seja, mais do que provar que a estrela existiu, àqueles homens interessava muito mais o que ela significava. Ainda segundo o Papa Bento XVI: “os astrônomos babilônicos podiam deduzir um evento de importância universal: o nascimento no país de Judá de um soberano que havia de trazer a salvação”.
E para lá foram, encontrando o próprio Criador em forma humana, o que significa algo imensurável naquele momento, algo que transcendia tanto o mero nascimento das criaturas como a própria ordem do Cosmos, da natureza. Segue o mesmo autor na obra citada: “não é a estrela que determina o destino do Menino, mas o Menino que guia a estrela”.
E citando Gregório Nazianzeno: “no próprio momento em que os magos se prostram diante de Jesus, teria chegado o fim da astrologia, porque a partir de então as estrelas teriam girado na órbita estabelecida por Cristo”.
Por “fim da astrologia” entenda-se o fim de suposta determinação do destino humano pelos corpos celestes e controladores dos eventos do mundo. A Encarnação inverte radicalmente essa lógica: é Jesus quem determina o destino das estrelas e de toda a criação. O nascimento de Jesus marca, portanto, não apenas uma guinada cosmológica, mas uma emancipação antropológica: “o homem assumido por Deus – como aqui se mostra no Filho Unigênito – é maior do que todos os poderes do mundo material e vale mais do que o universo inteiro”.
Portanto, a acusação de que o cristianismo teria se apropriado dessas datas para facilitar a conversão de pagãos, embora seja comum e, à primeira vista, parecer plausível, não se sustenta diante da magnitude do evento. Absolutamente nada pode ser comparado e absolutamente tudo tem de ser considerado à luz do Natal, inclusive essas festividades.
A humildade divina
Mas era possível aos reis magos entenderem isso naquele momento? O Papa Bento XVI, meditando a respeito, especulou: “Vários fatores podiam concorrer para fazer intuir na linguagem da estrela uma mensagem de esperança. Mas tudo isso podia pôr a caminho somente quem fosse homem duma certa inquietação interior, homem de esperança, à procura da verdadeira Estrela da salvação”.
Imaginemos, então, a cena: os magos, vindos do Oriente, chegam a Belém entre curiosos e esperançosos. O que veem? Não um palácio real, não um trono de ouro, mas um estábulo, uma manjedoura, um menino envolto em panos, na mais extrema pobreza. Um novo rei, um salvador? Assim? A impossibilidade de compreenderem plenamente o significado do que viam, com a mente ainda presa às grandezas terrenas, é palpável.
Contrastemos essa cena com a dos pastores. Homens simples, que passavam a noite nos campos e foram os primeiros a receber o anúncio angélico: “Não temais, eis que vos anuncio uma grande alegria, que o será para todo o povo: hoje, na cidade de Davi, vos nasceu o Salvador, que é o Cristo Senhor” (Lc 2,10-11). A eles, os humildes, os despojados, foi dada a clareza da revelação.
Essa inversão não é casual. Os Magos, representantes da sabedoria humana, da intelectualidade e do poder terreno, perceberam o sinal antes, mas chegaram depois. Essa lógica divina antecipa um dos ensinamentos de Jesus: “os últimos serão os primeiros” (Mt 20,16). A Encarnação inverte as hierarquias do mundo, elevando os humildes e questionando a suficiência da sabedoria meramente humana.
Isso nos remete diretamente à primeira das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus” (Mt 5,3). São Francisco de Sales, em seu “Tratado do Amor de Deus”, lembra da versão grega dos Evangelhos, que diz: “Bem-aventurados os mendigos de espírito“. Para nossa época, que vê no pobre apenas o aspecto material, é uma lembrança mais do que necessária, dimensionando melhor a pobreza, também naquilo que ela tem de mais humilhante: o mendigar.
Voltemos aos reis magos. Como reagiram diante da pobreza à sua frente? Reconheceram sua limitação, sua pobreza intelectual para entender o que acontecia? Sim, pois se prostraram e adoraram o Menino. Eis a “postura do Natal“: a atitude de humildade diante da manifestação divina que se dá na mais radical pobreza. O termo “pobres de espírito“, portanto, não se refere primordialmente à pobreza material, embora esta possa ser um caminho para ela. Refere-se, antes de tudo, à humildade, ao despojamento interior, ao reconhecimento da própria limitação e da total dependência de Deus. É a alma que, despojada de suas pretensões e autossuficiência, se abre para acolher o dom inestimável da Encarnação.
Santo Agostinho, com sua perspicácia, nos provoca à reflexão: “Dignou-se tornar-se homem. Que mais desejas? Deus humilhou-se pouco por ti?“. Nesta frase, ecoa a maravilha da humildade divina, que se faz carne para nos elevar, assim como ecoa o desafio escandaloso da humildade necessária para se prostrar diante desta pobreza.