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O chanceler alemão, Friedrich Merz, discursa no encontro de líderes da COP 30, em Belém. (Foto: André Coelho/EFE)

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Eu tenho amigos alemães. Eles falam como pensam e pensam como vivem. Sem floreio, sem rodeio, sem medo de parecer rudes. Friedrich Merz não seria diferente. Não que eu o considere especialmente talentoso no trato diplomático; ele não é. Mas quem conhece minimamente a cultura alemã entende que a frase sobre a COP 30, em Belém, não é o escândalo moral em que a imprensa progressista brasileira o transformou. É o tipo de sinceridade incômoda que um alemão expressa quando acredita estar dizendo uma banalidade.

Sejamos honestos: quem se sentiu incomodado com a fala de Merz tem problemas sérios de autoestima; quem o chamou de nazista tem problemas sérios de caráter.

O discurso de Merz não tem o Brasil como alvo. Ele tem a Alemanha como preocupação. Merz não falou em comício partidário nem num improviso irritado. Ele estava em Berlim, diante de empresários, políticos e líderes do setor produtivo, abrindo um evento marcado pela estagnação econômica, crise energética, avanço da AfD e fadiga institucional. Não era um discurso sobre política externa. Era um discurso sobre sobrevivência interna.

Quem se sentiu incomodado com a fala de Merz tem problemas sérios de autoestima; quem o chamou de nazista tem problemas sérios de caráter

Belém entra ali como nota lateral no calor de um argumento maior. O foco de Merz é a Alemanha. E seu eixo é a palavra que sustenta a autocompreensão política alemã desde 1945: Ordnung. Os alemães levam a sério seus conceitos. No centro da fala, ele articula: “unsere Demokratie zu verteidigen… und auch unsere marktwirtschaftliche Ordnung zu verteidigen“. A tese é simples: uma sociedade aberta só permanece aberta quando defende sem hesitação seu arcabouço institucional, isto é, “defender a nossa democracia e defender a nossa ordem econômica”. A Alemanha é estável e livre porque leva a sério sua ordem institucional (ordnungspolitische Stabilität), tratada não como detalhe retórico, mas como fundamento moral da vida pública.

E é preciso lembrar um ponto básico: Merz não cita Belém em nenhum momento. Menciona apenas Brasilien como referência de viagem e se refere ao destino como “diesem Ort, wo wir da waren“ – “aquele lugar onde estávamos”. O Brasil não aparece como alvo do discurso. Surge como circunstância vivida, usada de passagem para reforçar a defesa da ordem das instuições alemãs. Isso não é abstrato. É o cimento da reunificação, da prosperidade e da paz duradoura. Merz está preocupado com populismos, extremismos e declínio econômico. A anedota sobre Belém é apenas contraste ilustrativo: ordem se constrói; desordem se vê.

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Entendido isso, o choque brasileiro parece ainda mais artificial. Não houve xenofobia; houve comparação. Não houve desprezo moral; houve franqueza funcional. O problema é que o Brasil parece sempre operar numa cultura de alto contexto, na qual cada frase precisa de acolchoamento simbólico e gestos suaves para não ofender ninguém. A forma importa mais que o conteúdo. Já o alemão vive no regime oposto: cultura de baixo contexto, direta e explícita. Ele não constrói clima, não adocica, não envolve de metáforas. A frase é a frase. Quem conhece alemão sabe que não há subtexto escondido.

Foi justamente por desconhecer essa diferença de ethos que parte da imprensa brasileira reagiu com ressentimento. A elite progressista que cobre COPs e vive em simbiose com o moralismo internacional viu ali uma chance de reafirmar sua identidade: acusar a Alemanha de arrogância e flertar com o fantasma do nazismo. O discurso de Merz foi analisado menos pelo que disse e mais pelo país de onde veio. Alemão colonizador. É o preconceito elegante da nossa esquerda cosmopolita, sempre pronta a enxergar opressões imaginárias enquanto ignora a realidade concreta.

A elite que gourmetiza favela ofende-se com a frase de Merz, mas não com a realidade social do país

O presidente Lula reforçou o teatrinho. Sua resposta – “ele deveria ter ido ao boteco, dançado, comido bem” – revela mais sobre o Brasil que sobre Merz. A ideia de que um estrangeiro só entende nosso país depois de visitar um bar é a síntese do nosso patrimonialismo cordial. A política brasileira opera assim: afeto no lugar de Estado, simpatia no lugar de estrutura. O chanceler fala de democracia e instituições; o presidente responde com gastronomia. O contraste é quase pedagógico.

E o fato simples permanece: Belém tem problemas sérios. Violência, abandono urbano, saneamento básico insuficiente. Qualquer jornalista europeu que passasse uma semana na cidade teria a mesma impressão dos jornalistas citados por Merz. A elite que gourmetiza favela ofende-se com a frase, mas não com a realidade social do país.

Entre a Ordnungspolitische Stabilität alemã e a sensibilidade gentil brasileira, escolhemos sempre o caminho mais fácil: indignar-nos com palavras, não com fatos. O episódio diz menos sobre o chanceler alemão e mais sobre o nosso país. Merz falou demais; nós ouvimos de menos. E, entre a ordem deles e a nossa vaidade tropical, a diferença é simples: eles defendem o que construíram. Nós defendemos a imagem do que gostaríamos de ser.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos