O discurso é de proteção social; o resultado é um Estado pesado que tributa. (Foto: imagem criada usando ChatGPT/Gazeta do Povo)

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A promessa socialista é sedutora: colocar o Estado no centro da economia para corrigir injustiças e proteger vulneráveis. Um século após a experiência soviética e décadas de social-democracia em economias mistas, contudo, é difícil ignorar a repetição de baixo crescimento, crises fiscais e empobrecimento relativo desses países. No Brasil, a expansão de programas sociais financiada pelo boom das commodities, crédito público e contabilidade criativa produziu sensação de ascensão; quando o ciclo virou, restaram dívida elevada, inflação ressurgente e serviços frágeis. Por que, apesar desse histórico, a esquerda social-democrata mantém tanta força, especialmente entre a elite intelectual e artística?

A economia política ajuda a entender a parte material do problema: sem aumento sustentado de produtividade, o expansionismo fiscal voltado a programas sociais tende a gerar ganhos de curto prazo seguidos de estagnação. A experiência latino-americana de “socialismo de gasto”, em que o Estado distribui benefícios muito além da sua base tributária estável, resulta em déficits crônicos, inflação e fuga de investimento. O discurso é de proteção social; o resultado é um Estado pesado que tributa, entrega pouco e sufoca o crescimento que poderia tirar a população da pobreza.

O expansionismo fiscal voltado a programas sociais tende a gerar ganhos de curto prazo seguidos de estagnação

O enigma central, porém, é político e psicológico. Pesquisas em psicologia moral de Jonathan Haidt mostram que eleitores de esquerda tendem a atribuir peso desproporcional às dimensões de cuidado e justiça distributiva, enquanto conservadores valorizam de forma mais equilibrada também lealdade, autoridade e ordem. Diante de um programa social caro e ineficiente, o social-democrata não enxerga apenas uma política contestável; ele vê um símbolo de compaixão. Críticas fiscais soam, para muitos, como ataques morais aos pobres, não como alertas técnicos.

Estudos de personalidade também iluminam esse quadro. Meta-análises sintetizadas por John Jost, Gerard Saucier e outros apontam correlação entre maior Abertura à Experiência, no modelo dos Cinco Grandes Fatores, e posições mais liberais; já a Conscienciosidade relaciona-se, em média, a atitudes mais conservadoras. Jan-Emmanuel De Neve, analisando grande amostra americana, mostrou que experiências adversas na infância, incluindo eventos traumáticos, amplificam a tendência de indivíduos altamente abertos adotarem posições políticas liberais. Não se trata de reduzir a esquerda a trauma, mas de reconhecer que biografia e traços psicológicos ajudam a explicar a força emocional de narrativas igualitaristas e estatizantes.

Modelos de valores de Shalom Schwartz reforçam essa leitura. Em diversos países, pessoas que se posicionam à esquerda pontuam mais alto em autotranscendência (universalismo, benevolência) e abertura à mudança, enquanto eleitores de direita valorizam mais conservação e segurança. Em sociedades desiguais, quem internalizou valores de cuidado universal tende a ver o Estado como instrumento natural de reparação histórica, mesmo quando a engenharia fiscal necessária se mostra insustentável.

Thomas Piketty descreveu a ascensão de uma “esquerda brâmane”: setores de alta escolaridade – professores universitários, jornalistas, artistas, profissionais de cultura – tornaram-se o núcleo eleitoral da centro-esquerda nas democracias ocidentais. No Brasil, esse padrão aparece na concentração de simpatias social-democratas em universidades, redações, meios culturais e ONGs. Esses grupos formam uma elite simbólica com senso de missão moral e pouca exposição direta ao custo do Estado ineficiente sobre pequenos empreendedores e trabalhadores informais. Curiosamente, essa elite que se reivindica humanista convive com correntes de esquerda que flertaram com o antissemitismo, mostrando que nem sempre a retórica de inclusão se traduz em respeito real à pluralidade e ao humanismo.

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A psicologia cognitiva ajuda a entender por que a crítica econômica tem pouca penetração nesse meio. Viés de confirmação, raciocínio motivado e dissonância cognitiva – estudados por autores como Leon Festinger e Ziva Kunda – fazem com que dados inconvenientes sejam reinterpretados como exceção, sabotagem ou desvio do “socialismo verdadeiro”. Para intelectuais e artistas cuja identidade está ligada a “dar voz aos oprimidos”, admitir que o modelo que defendem muitas vezes resulta em inflação, desemprego, preconceito e serviços ruins é emocionalmente devastador; é mais fácil insistir que faltou radicalidade, pureza ou tempo.

Nada disso significa que a popularidade da esquerda se explique apenas por psicologia; contam também a desigualdade extrema, o descrédito de elites econômicas tradicionais e erros da própria direita. Mas os estudos citados sugerem que valores morais, traços de personalidade, experiências de adversidade e vieses cognitivos criam terreno fértil para que, mesmo depois de repetidos fracassos fiscais e produtivos, a narrativa social-democrata siga parecendo moralmente superior. Enquanto não surgir um projeto que combine responsabilidade fiscal rigorosa com compromisso crível de proteção social e que seja capaz de falar à mesma gramática moral de cuidado e justiça, o debate econômico continuará parecendo, para muitos, um detalhe técnico diante de uma questão ética. E, nesse cenário, a experiência que não deu certo não basta para ser abandonada: ela é racionalizada, romantizada e renovada sob novos slogans, a cada nova geração.

Alexandre Nigri, CEO do Grupo Maxinvest, é economista e mestre em Engenharia de Produção.