No centro da sala, vê-se uma mesa de fórmica, com doze velas que lançam uma luz suave em todo o ambiente. (Foto: Imagem criada usando Gemini/ Gazeta do Povo)

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1.

É noite de 24 de dezembro na cidade antigamente chamada São Paulo. A viatura desce a antiga Rua da Consolação, agora chamada ― como é o nome dela mesmo?

Dimas tenta se lembrar do novo nome sem olhar a placa e sem tirar a atenção do volante. De repente, um estalo:

Erundina, Rua da Erundina diz em voz baixa, despertando a atenção do Comandante Heron, que está ao seu lado, no banco do carona.

Heron sorri. Como é que esse sujeito consegue ouvir um sussurro por trás do escafandro? Deve ter ouvido de leproso, como dizia Vó Marta.

― Você conheceu a velha?

― Eu não, mas o pai dizia que votou nela uma vez.

Novo sorriso, por trás da viseira de plástico.

― Teu pai era fascista, Dimas?

Dimas fica em silêncio; olha para o muro imundo do também renomeado Cemitério da Erundina, pigarreia e diz com a voz abafada pela máscara:

― Se ele votou na velha, não devia ser, né?

Dimas só não contou que o pai odiava a Erundina. Sim, votou na velha, mas se arrependeu quase que imediatamente. Certa vez, falou sobre a antiga prefeita em um dos passeios com Dimas pelo cemitério. Mas foi um comentário rápido; quase não falavam sobre política nas caminhadas entre os túmulos. Gostavam mesmo é de falar dos mortos famosos, e de calcular as idades dos mortos, e de tirar sarro dos mortos com nome engraçado.

― Arno Kuhl. Vê lá se isso é nome! ― dizia o pai ao filho, e este, menino de sete anos, gargalhava de perder o fôlego.

Certa vez, do nada, o pai de Dimas observou:

― A decadência de São Paulo começou quando a Erundina entregou a administração funerária ao PCB e a secretária de Educação ao Paulo Freire.

Agora o cemitério se chama Erundina.

2.

Em cada esquina há uma Tela Pública. No gigantesco quadrado luminoso, discursa o Presidente do Planeta, Deng Zedong. O discurso também é reproduzido pelo rádio ― e é obrigatório ouvir. Se qualquer pessoa for pega com o rádio desligado na hora dos pronunciamentos oficiais, a multa é pesada. Mas, no caso deles, funcionários públicos, a perspectiva é bem mais sinistra: não só ir pro olho da rua, como ser processado pelos Tribunais Populares, perder a Carteira de Mobilidade Social e terminar na Zona de Exclusão. Ninguém quer esse destino.

Hoje é a Noite da Consciência Igualitária. Deng discursa em mandarim, mas sua voz é encoberta pela tradução simultânea de seu colega Petros, Presidente da República Socialista do Brasil, primeiro chefe não-binário da nação. Enquanto dirige Erundina abaixo, Dimas ouve aquele estranho dueto com o paulistanês em primeiro plano e o recitativo chinês ao fundo, em sottovoce. Depois dos pronunciamentos de Deng e Petros, quem encerra a noite é o Dr. Bonini, Comissário da Saúde Pública, no seu carioquês pesado:

― E pensar, mei estimade amigue Petros, que há algunx poucox anox o mundo comemorava nesta data uma festa divisionista e excludente, que ofendia os princípiox de solidariedade e igualitarixmo da Fé Global...

Heron tem o rosto voltado para Dimas, e Dimas o percebe. Há algum tempo, o comandante daquela unidade da Guarda Sanitária vinha notando expressões de tédio e desapontamento em seu auxiliar imediato. Acaso ele estaria fraquejando? Em algumas operações, Dimas parecia, de algum modo, estar alheio aos procedimentos e, o que é pior, manifestar uma ridícula compaixão pelos inimigos. Por isso, Heron fizera questão de designá-lo para a missão daquela noite. Hoje não irão capturar simples milicianos, desses que fazem arminha na mão e nos chamam de comunistas, mas sim desbaratar uma comunidade do tipo mais perigoso de inimigos: os cristofascistas. Havia uma denúncia de lesa-laicismo na Via Presidenta Dilma, antiga Alameda Barão de Limeira, no miolo de uma quadra da Zona de Exclusão, habitada por toda sorte de não-vacinados, milicianos e negacionistas.

Via. Presidenta. Dilma. Aquelas palavras provocaram em Dimas uma espécie indefinida de mal-estar, como se o nome do logradouro despertasse, no fundo de sua consciência, uma recordação impertinente, que melhor seria deixar dormindo. Durante as visitas com seu pai ao Cemitério da Consolação, digo, Cemitério da Erundina, o velho gostava de recordar as antigas festas de Natal no apartamento da família na Barão de Limeira, digo, Presidenta Dilma. O Comissário da Saúde continua:

― Houve um tempo em que ax trevax do obxcurantismo fascixtoide triunfaram nesse país, por meio das fake newx e das milíciax antidemocráticax. Mas esse mal foi cortado pela raiz. O Natal foi dexmascarado e jogado no lugar que lhe cabia: a lata de lixo da História!

A viatura passa pela fronteira da Zona de Exclusão: o Elevado Carlos Marighella, antigo Elevado Costa e Silva, mas que o povo insiste em chamar de Minhocão. Hordas de crackudos claudicam por baixo do compridíssimo e serpeante viaduto, e só não atacam a viatura da Guarda Sanitária porque ainda lhes resta um fiapo de instinto de sobrevivência. No sinal da Travessa Suplicy, esquina com a Flávio Dino, Dimas não pode deixar de observar a passagem de três mendigos cobertos de estopa que, com estranha delicadeza, olham para o alto, para além dos prédios administrados pelo MTST, e levam pacotes nas mãos. Ao contemplá-los, Dimas tem a certeza de que eles não pertencem àquele lugar.

A 100 metros do Minhocão, ergue-se o Muro Antifascista, que delimita a Zona de Exclusão, onde vive a escória da sociedade. Ali as ruas estão absolutamente desertas, e isso tem um motivo: na ZE, qualquer forma viva que se movimente durante o toque de recolher será alvejada pelas Patrulhas. O único som que se ouve é o mandarim de Deng sendo traduzido por Petros.

Dimas apresenta suas credenciais no posto de vigilância do Muro. No prédio vizinho do posto, há um grafite com a imagem do presépio socialista: o companheiro Che no lugar de São José, Iemanjá no lugar de Nossa Senhora e um bebê monstruoso no lugar do Menino.

Com um nó na garganta, Dimas observa o grafite e em seguida inicia seu trajeto pelas ruas em que seu pai passou a infância: Apa (digo, MST), Vitorino Carmilo (digo, Jornalista Magalhães), Ribeiro da Silva (digo, Doutor Átila) e, finalmente, a Barão de Limeira transicionada para Presidenta Dilma.

A viatura chega então ao endereço desejado. Nada de sirene, nada de giroflex; trata-se de uma ação-surpresa. Outras cinco viaturas se aproximam e param; dos veículos saltam mais dez homens vestidos de escafandro. Heron deixa o carro, sem emitir o menor ruído, e faz um gesto circular com o indicador direito que significa: por aqui. Os 12 agentes formam uma fila indiana; Heron vai à frente, Dimas é o último. Dr. Bonini prossegue:

Ox valorex iluministax da diversidade e da tolerância subxtituíram os velhox dogmax e as velhax superstiçõex...

A fileira de escafandros se move rumo a um prédio carcomido, cuja pintura se desfez há muitos anos, talvez antes mesmo da primeira onda de Covid. Camadas e camadas de pichações ocupam as paredes; numa placa chamuscada, é possível ler, com algum esforço: Edifício Diderot. Sobre um sofá rasgado de três pernas a um canto do hall de entrada, em posição que quase desafia as leis da física, dorme de boca aberta um mendigo, sem máscara. Em outras circunstâncias, ele seria imediatamente detido; mas agora a prioridade é outra.

Desde que leu a placa com o nome do prédio, Dimas começou a suar dentro do escafandro. Agora não há dúvida. Quando o pai lhe contava sobre as festas de Natal no apartamento da Barão de Limeira, sempre dizia que o nome do prédio era pronunciado por quase todos da mesma maneira: Dideróte. E o pai de Dimas ria...

3.

Na portaria do edifício, diante do porteiro crackudo desmaiado na poltrona, Heron dá as ordens:

O prédio tem doze andares. Não sabemos o local em que os cristofascistas estão. Há quatro apartamentos por andar. Cada um fica responsável por um andar. Dimas, você pega o primeiro.

Ele sobe as escadas e, como já esperava, encontra os quatro apartamentos: 11 e 13, voltados para o Leste; 12 e 14, voltados para o Oeste.

Dimas começa pelo 11. É um apartamento pequeno: sala, quarto, banheiro, cozinha. Contígua à sala, há uma varanda, que dá para um galpão mergulhado na penumbra. Não há ninguém ali. Por toda parte há lixo, no meio do qual se destacam as latas e os cachimbos de crack. Apenas mais um apartamento da Cracolândia. Nenhuma novidade.

Dimas, então, abre a porta do apartamento 13.  

No centro da sala, vê-se uma mesa de fórmica, com doze velas que lançam uma luz suave em todo o ambiente. Ao lado da mesa, há uma árvore artificial decorada com fitas vermelhas, bolas douradas e uma estrela no topo; um feixe de minúsculas lâmpadas coloridas envolve os ramos da árvore, piscando a cada três segundos. Aos pés da árvore, imagens de gesso pintado representam um bebê sobre uma cama de palha, ladeado por uma mulher e um homem. A cena inclui ainda um pastor de ovelhas, uma vaca, um cordeiro e um burro.

O que deixaria qualquer um impressionado é o asseio e tranquilidade do lugar. Alguém havia preservado aquele minúsculo apartamento como uma ilha de ordem, dentro de uma região desolada da metrópole.  E por que não há ninguém? Aonde foram todos? Esconderam-se, os transgressores da ordem pública?

Entregue a esses pensamentos, Dimas ouve uma voz conhecida:

Tubo bem, Neno?

É o seu pai. Está jovem, sorri com sua fileira de dentes amarelos. Há pelo menos 40 anos ninguém trata Dimas pelo apelido de infância.

  Venha ver o presente que sua irmã trouxe pra você.

No canto da sala, há um pacote embrulhado em papel azul. Dimas desfaz com muito cuidado o laço e o embrulho, e tira dentro da caixa um robô japonês, em cujo tronco há uma tela que passa imagens de uma paisagem desértica e estrelada.

Por que você não tira esse escafandro, Neno? Aqui não precisamos disso.

Dimas acata a sugestão do pai. Assim que se livra do capacete, percebe que há outras pessoas no apartamento: Vó Marta, Vô Antônio, Mamãe, Tio André, Tio Natan. A um canto, brincando com suas Fofoletes, está sua irmã Nãomesqueças. Dimas se aproxima da garota e diz:

― Obrigado pelo presente, Nãomesqueças. Você sabe como eu amo esses robôs.

A menina responde, grudando seus olhos negros no irmão:

― Só não precisava ter virado um deles, Neno.

Dimas então ouve batidas fortes na porta. “Será o Heron?”

Vó Marta anuncia a todos:

― É o Padre Fiori. Ele veio!

4.

Ide, missa est.

Deo Gratias.

No momento em que Padre Fiori encerra a celebração, pancadas fortes ressoam no apartamento. Agora é Heron, Dimas não tem nenhuma dúvida. Nãomeesqueças quer atender à porta, mas Dimas a impede:

Isso é comigo.

Dimas coloca novamente o escafandro, vai até a porta e abre-a suavemente. Heron está furioso.

O que é que deu em você, cara? Resolveu virar nóia?

Dimas apenas sorri.

Quero que te mostrar uma coisa, Heron.

Toma-o pelo braço e o conduz até a sala.

Não há mais ninguém. Apenas uma cruz tosca, jogada no assoalho.

Por que é que você demorou tanto, cara? rosna Heron.

É que eu queria te dizer uma coisa.

O quê?

Feliz Natal. Pode me prender.

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