padre júlio lancellotti
O padre Júlio Lancellotti em foto de 2023, na paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, em São Paulo. (Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil)

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Eu disse ontem que a entrevista com a Ana Manente, da Ajuda à Igreja que Sofre, seria a coluna final do ano, mas resolvi voltar aqui rapidamente para algumas poucas palavras sobre o caso do padre Júlio Lancellotti, que vai dar um tempo nas mídias sociais e deixar de transmitir pela internet as missas celebradas por ele, a pedido do cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer. Basicamente, vou repetir aqui o que disse no Última Análise de ontem; se você assistiu ao programa, não vai encontrar praticamente nenhuma novidade; a única coisa que eu não falei ontem foi que, a respeito das acusações que há contra ele (aquelas histórias de Pajeros e assemelhados), eu não posso dar opinião porque nunca pesquisei a fundo.

O trabalho social do padre Júlio é admirável

Já contei uma vez aqui que meu primeiro contato com o trabalho social do padre Júlio Lancellotti há quase 30 anos, quando eu era estudante de Jornalismo na USP e fiz uma reportagem para nosso jornal-laboratório sobre a Casa Vida, a instituição criada por ele para acolher crianças soropositivas. E essa é só uma parte de tudo o que ele faz pelos mais pobres, especialmente pela população de rua. Ele faz coisas que nós não faríamos nem por um milhão de dólares, para lembrar do episódio em que um repórter viu a Madre Teresa de Calcutá cuidando de leprosos. Se o padre Júlio for pro céu e nós também, ele estará bem acima de nós pelos critérios de Mateus 25 – o “tive fome e me destes de comer” etc.

Ficar longe das mídias sociais vai acabar fazendo bem ao padre Júlio, permitindo que ele se dedique ainda mais ao que faz bem (e que vai levá-lo ao céu) sem se meter em novas encrencas

O problema não é o que ele faz, mas o que ele diz

Dito isso, é bem óbvio que algumas manifestações públicas recentes do padre Júlio Lancellotti são muito problemáticas. A participação dele no tal filme (chamar de “documentário” é um erro grotesco, porque está mais pra ficção) que trata Santa Marina como transexual porque ela se disfarçou de homem para poder permanecer ao lado do pai viúvo que decidiu entrar para a vida monástica, é um escárnio. Em outro episódio recente, ele disse que a Igreja Católica teria sido fundada por Constantino, uma bizarrice histórica que mereceu uma longa refutação no jornal da Arquidiocese de São Paulo, e da qual o padre se retratou depois. Tivemos a missa com o “sem anistia!”, tivemos a presença dele em uma passeata que também contou com a defesa dos genocidas do Hamas... enfim, a lista é grande, e o estrago também.

Estrago, porque muita gente não sabe separar o que são opiniões pessoais de um padre, bispo, cardeal ou mesmo papa, e a doutrina da Igreja. Não existe uma “visão católica” (muito menos uma “única visão católica, obrigatória para todos os fiéis”) sobre anistia, questão palestina, taxa de juros, imigração, política ambiental e uma infinidade de outros temas. No caso do padre Júlio Lancellotti, ainda tem a agravante de algumas dessas afirmações dele terem sido feitas durante a Santa Missa, o que transforma o principal ato de culto católico em palanque político.

Decisão de dom Odilo é prudente e preserva o padre enquanto não prejudica trabalho social

O arcebispo não transferiu o padre Júlio (apesar da boataria, o próprio sacerdote desmentiu essa história), nem o impediu de continuar o seu trabalho com a população de rua. Dom Odilo apenas limitou a presença midiática do padre, que era justamente a fonte das confusões e da hostilidade – porque sim, muita gente passa completamente dos limites e, em vez de criticar com serenidade as bobagens, usa de uma agressividade inaceitável, ainda mais dirigida a um ministro ordenado da Igreja. É algo que vai acabar lhe fazendo bem, permitindo que ele se dedique ainda mais ao que faz bem (e que vai levá-lo ao céu, como disse) sem se meter em novas encrencas.

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Dom Odilo tem autoridade para fazer o que fez

Está sendo tragicamente engraçado ver a revolta de muita gente que nunca botou um pé em uma igreja (a não ser, talvez, em época de eleição), dizendo que vai reclamar com a CNBB, com o núncio apostólico, com o papa, sei lá mais com quem. Lamento jogar água no chope dessa turma e dizer que o bispo diocesano é a autoridade dentro da sua diocese, e pode impor esse tipo de regras aos padres incardinados na diocese. Não é algo que a CNBB, por exemplo, possa reverter, como já sabe quem leu minha coluna da semana retrasada sobre a vigília de oração por Bolsonaro em Curitiba.

Por que só agora?

O padre Júlio Lancellotti já vem causando controvérsia há um bom tempo; por que dom Odilo tomou essa decisão só agora? Há quem fale em interferência vinda do Vaticano, há quem ache que o arcebispo finalmente percebeu o tamanho do problema, há quem creia que alguns casos recentes (o “sem anistia” na missa é de setembro; o caso da “Igreja fundada por Constantino” é de outubro) foram uma espécie de gota d’água. Mas a única resposta honesta à pergunta é: não sabemos. Nem o arcebispo, nem o padre falaram sobre isso, e já afirmaram que tudo o que havia para dizer publicamente já foi dito.

O conselho continua a ser o de sempre: rezar pelos bispos e pelos padres, para que Deus lhes dê força, sabedoria e coragem para fazer e dizer o certo. Todos eles: os bons, para Deus os confirme no bom caminho; os maus, para que percebam seus erros, se arrependam deles e se emendem.