A crise da imprensa se revela no caso BBC: distorções passam sem escândalo, o público se fragmenta, o senso comum se perde e as redes substituem a mídia por julgamentos apressados. (Foto: Andy Rain/EFE/EPA)

Ouça este conteúdo

A crise da imprensa talvez seja mais profunda do que parece. A parte mais visível é óbvia: veículos tradicionais de comunicação usam sua credibilidade para fazer propaganda enganosa — como no caso recente da BBC, que editou uma fala de Donald Trump para tentar incriminá-lo. Já a parte menos visível da crise parece ter a ver com a forma como se consome informação hoje em dia.

A segmentação exagerada do público pode estar acabando com o que se chamava de senso comum. O caso da BBC, cuja gravidade deveria ter jogado sumariamente toda a imprensa no divã — e, consequentemente, sacudido a opinião pública —, o vento levou.

A tentativa de uma das maiores emissoras do mundo de interferir na eleição presidencial dos EUA, por meio de uma fraude grosseira (forjando uma tentativa de golpe de Estado), nem ganhou status de escândalo. Aparentemente, a parte expressiva do público que ainda confia no jornalismo tradicional (apesar de expedientes como esse) serve de anestésico para os absurdos.

O controle de qualidade da imprensa sempre veio da ressonância dos erros. Os tradutores da realidade não podiam aparecer, de jeito algum, como traidores do fato. Manchetes que afastassem o público da verdade eram o pecado do jornalismo — e, se fosse por má-fé, eram o pecado capital. Por que absurdos como esse da BBC, com relação a Trump, estão saindo tão barato? Porque o absurdo só é lido como verdadeiramente absurdo pela parte do público que já não confia em veículos como a BBC.

Para a parte que ainda consome a imprensa tradicional sem pulgas atrás da orelha, notícias envolvendo personagens como Trump — ou qualquer um dos vilões de plantão — já entram no seu radar com o selo da execração permitida (ou até desejada).

Ou seja: a mídia tem cúmplices para o seu pecado. E, mesmo que surja o pecado capital, ele não repercutirá como tal

VEJA TAMBÉM:

O sumiço do escândalo da BBC parece vir de uma licença pública para a distorção. Simplesmente, a cadeia da indignação e do repúdio não se fecha.

Ao mesmo tempo, algo estranho passou a acontecer com a parte do público que perdeu a confiança na mídia tradicional. A excessiva fragmentação das redes sociais — e a multiplicidade de fontes substitutas do velho jornalismo — trouxe a necessidade de uma nova espécie de opinião pública: as ondas autorreferentes.

Com a ausência da grande imprensa como referência do que seja verdadeiro no noticiário, o público passou a buscar o crivo em si próprio. Por um lado, esse fenômeno tem trazido um avanço democrático — com as viralizações e os resultados de trending topics se contrapondo e, eventualmente, corrigindo o rumo do noticiário.

Por outro lado, esse poder difuso de mobilização ampla e instantânea levou à disseminação de alguns venenos modernos. A tentação do julgamento apressado é um deles.

A coletividade, desprotegida pela ausência de uma grande imprensa confiável, desenvolveu mecanismos de autodefesa arriscados. A imediata adesão em bloco a uma tendência dominante de crítica pode ser anticorpo, mas também pode ser infecção — especialmente se ao julgamento apressado sobrevier a condenação sumária.

Claro que situações assim acabam ficando na faixa estreita entre a redenção e o linchamento. E o que se tornou uma arma democrática de autoproteção do consumidor moderno — pela denúncia, repúdio e boicote legítimo — vai ficando na fronteira dos movimentos obscuros da chamada “cultura do cancelamento”. No universo da mídia, o perigo de fuzilar primeiro e pensar depois é matar justamente quem poderia salvá-lo.