Contraste no campo: mesmo com a produção ativa no Centro-Oeste, o agronegócio enfrenta sua pior crise de liquidez e lidera os pedidos de recuperação judicial.
Contraste no campo: mesmo com a produção ativa no Centro-Oeste, o agronegócio enfrenta sua pior crise de liquidez e lidera os pedidos de recuperação judicial. (Foto: Michel Willian/Arquivo/Gazeta do Povo)

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O setor produtivo brasileiro deve enfrentar novos recordes de recuperação judicial e falência em 2026, mesmo com a expectativa de queda da taxa Selic. A combinação de juros reais ainda elevados, retração do crédito bancário e incerteza eleitoral cria um cenário de crise de liquidez para as empresas.

A Selic deve encerrar 2026 em 12,25%, segundo o último boletim Focus do Banco Central, mas o alívio será insuficiente para reverter o aperto financeiro. "Teremos novos recordes de inadimplência corporativa; recuperações judiciais e falências devido à taxa de juros restritiva", diz Alessandra Ribeiro, diretora de macroeconomia da Tendências Consultoria.

O cerco financeiro que sufoca as empresas

Juros altos corroem o caixa e dificultam saída da recuperação judicial

O primeiro fator de pressão é o custo do dinheiro. Com a Selic em 15% ao ano, a mais alta em 19 anos, há uma maior pressão sobre o caixa das empresas. A taxa média de juros com recursos livres cobrada das empresas estava em 1,9% ao mês em outubro. No mesmo mês do ano passado, era de 1,62%, de acordo com o Banco Central.

"Isso corrói o caixa e dificulta o alongamento de dívida", afirma Roberta Gonzaga, consultora da RGF Associados especializada em recuperação judicial e reestruturação de empresas.

Segundo a consultora, não há perspectiva de alívio monetário substancial a curto prazo. A expectativa de redução da Selic para um dígito é remota: só a partir de 2028, de acordo com as expectativas do mercado financeiro levantadas no boletim Focus. É uma situação que deve acelerar os pedidos de recuperação judicial antes de qualquer mudança na política monetária.

Patrícia Krause, economista para a América Latina da Coface, seguradora de crédito global, compartilha a avaliação. "Isso também afeta a capacidade de investimento e de pagamento das empresas e dos consumidores", afirma.

Na prática, recursos que deveriam ir para a produção são consumidos pelo serviço da dívida. "Recuperação judicial está diretamente correlacionada a juros maiores. Se o juro sobe, sobe a recuperação judicial. E o número só cai efetivamente quando a taxa fica abaixo de dois dígitos", afirma Fábio Astrauskas, CEO da Siegen Consultoria.

Crédito bancário seca e eleições travam decisões

Ao custo elevado do dinheiro, soma-se outro problema: a escassez de crédito. O sistema bancário mantém postura defensiva após o "choque Americanas" — quando a varejista revelou inconsistências contábeis de R$ 20 bilhões em janeiro de 2023 —, enquanto a proximidade das eleições presidenciais trava decisões de crédito. O resultado é uma onda crescente de insolvências que ameaça transformar processos de recuperação judicial em falências definitivas.

Bancos e fundos de investimento seguem com cautela extrema. O prazo médio das concessões de crédito com recursos livres para empresas era de 25,2 dias em outubro, segundo o BC. É o pior resultado para esse mês desde 2020, durante a pandemia da Covid-19.

Segundo a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), a desaceleração nas concessões só não é maior porque seguem sustentadas por programas governamentais para as empresas e linhas voltadas ao consumo para as famílias – embora neste caso, com uma piora da qualidade da carteira, com maior participação de linhas rotativas.

A exigência de garantias tornou-se uma barreira intransponível para quem já está em crise. Com juros elevados, as instituições financeiras endurecem as condições de negociação, dificultando acordos para redução de dívidas.

Empresas que buscaram sobreviver à pandemia e às crises subsequentes rolando dívidas chegam a 2026 sem reservas patrimoniais. "Muitas delas não têm mais ativos para dar garantia para dinheiro novo", alerta Gonzaga, da RGF.

A situação se agrava com os atrasos nos recebimentos. Pesquisa da Coface aponta que 77% das empresas na América Latina enfrentam atrasos nos pagamentos, com prazo médio de 42 dias. Para negócios que operam com caixa enxuto, essa defasagem é fatal.

O relatório do Monitor RGF do 3.º trimestre de 2025 ilustra essa retração: o crédito seletivo continua sendo a tônica, com bancos cobrando taxas mais elevadas e oferecendo prazos mais curtos. Não há distinção setorial. A postura restritiva das instituições financeiras atinge desde a indústria até o varejo, criando um ambiente onde o refinanciamento é praticamente inviável para quem não apresenta balanços sólidos.

A retração do crédito tem ainda outro agravante: a incerteza política. O ano de 2026 é eleitoral, e o mercado financeiro, avesso a surpresas, precifica a incerteza antecipadamente.

"Independentemente do resultado das eleições, os meses prévios trazem um cenário de insegurança para as instituições financeiras", explica a consultora da RGF. Segundo ela, essa postura defensiva fica mais forte porque ninguém sabe como a economia se comportará após a eleição.

Essa volatilidade paralisa tomadas de decisão e endurece as mesas de negociação. Bancos preferem reter caixa a arriscar empréstimos em um ambiente de polarização e dúvidas sobre a condução da política fiscal. "Esse cenário até as eleições vai ser um teste de resistência para as empresas", completa a consultora.

A Coface também aponta o risco político como fator central para 2026. O aumento da polarização e possíveis mudanças de governo geram instabilidade que impacta diretamente investimentos e políticas fiscais. Empresas que dependem de previsibilidade para gerir fluxos de caixa longos são prejudicadas por um calendário eleitoral que historicamente trava a economia. O impacto desse cenário adverso, porém, não é uniforme entre os setores.

Setores em colapso: do agro às pequenas empresas

Agronegócio lidera casos de recuperação judicial

Esse conjunto de fatores — juros altos, crédito escasso e incerteza política — atinge todos os setores, mas nenhum ilustra melhor a mudança na economia brasileira do que o agronegócio. Antes considerado a âncora do PIB, respondendo por quase 30% segundo dados do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da Universidade de São Paulo (Cepea-USP), as atividades ligadas direta ou indiretamente ao campo lideram hoje os índices de insolvência.

No terceiro trimestre, 12,6 em cada mil empresas ligadas à agropecuária ou produtores rurais estavam em recuperação judicial. O número é quase o dobro da indústria (6,49 em cada mil) e seis vezes acima da média nacional (2,04 em cada mil), segundo o Monitor RGF. A percepção de solidez do agro foi desfeita por uma combinação de fatores.

Esse desempenho negativo tem causas que vão além da macroeconomia: quebras de safra devido a eventos climáticos extremos, preços de commodities em baixa e, crucialmente, um endividamento maior.

Houve, segundo especialistas, uma entrada desordenada de novos players no setor entre 2020 e 2022, muitas vezes com gestão financeira amadora. "Muitas pessoas físicas ingressaram nesse mercado, o que trouxe uma questão de pouca profissionalização e pouca organização financeira", avalia Gonzaga.

Agora, esse produtor endividado depende de crédito intensivo para financiar a safra, mas não encontra oferta. Sem financiamento barato e com margens comprimidas pela queda dos preços internacionais e câmbio volátil, a crise no campo deixa de ser conjuntural e assume caráter estrutural.

Micro e pequenas quebram em efeito dominó

Enquanto o agro sofre com a alavancagem, as micro e pequenas empresas enfrentam crise pela falta de reservas. Elas representam cerca de 80% dos pedidos de recuperação judicial no país, segundo dados da RGF. São negócios que operam com capital de giro limitado e que, diante de juros altos prolongados e retração de consumo, não têm capacidade para superar a crise.

"Quando um desses negócios quebra, quase sempre alguém quebra junto: fornecedores, prestadores de serviço, credores que confiaram no fluxo e na palavra", destaca Anderson Leite, advogado especializado em Contencioso Cível, Consumidor e Cobrança do escritório Martorelli Advogados.

Há um risco sistêmico de pulverização. O volume de processos de menor porte ameaça congestionar o Judiciário, inviabilizando a recuperação de quem, de fato, teria viabilidade econômica. A insolvência desses pequenos players gera um efeito dominó, atingindo cadeias de suprimentos inteiras e elevando a inadimplência geral.

Quando a recuperação judicial não recupera mais

O cenário se agrava quando se analisa a eficácia dos processos de recuperação. Talvez o dado mais preocupante revelado pelos estudos recentes seja a ineficácia desses processos para muitas companhias. O instrumento legal, desenhado para salvar negócios viáveis, tem servido muitas vezes apenas como etapa prévia ao encerramento das atividades.

O número de empresas que saíram de processos de recuperação judicial para a decretação da falência está crescendo nos últimos trimestres. O percentual saltou de 29% no segundo trimestre de 2025 para 37% no terceiro, segundo o Monitor RGF.

Um dos principais motivos é o diagnóstico tardio. "Empresários adiam o pedido de socorro e chegam ao processo sem ativos livres para garantir 'dinheiro novo'", explica Gonzaga. A resistência cultural em admitir a crise faz com que a busca pela proteção judicial ocorra tarde demais.

Quando a empresa finalmente entra em recuperação, já está sem reservas financeiras e sem garantias a oferecer. Os bancos, por sua vez, negam novos créditos. Sem "dinheiro novo" — essencial para a reestruturação —, o plano de recuperação torna-se inviável, e a transformação em falência é o desfecho provável.

O ano que testará a sobrevivência empresarial

Reforma tributária adiciona complexidade à crise

Como se não bastassem os juros e a incerteza política, 2026 trará um novo desafio operacional: o início da transição da reforma tributária. A partir de janeiro, empresas terão de lidar com a coexistência de dois sistemas, o que Rubens Souza, sócio-tributário da W Faria Advogados, classifica como um período de "muito mais complexidade".

"A reforma só melhora o ambiente de negócios em 2033, quando entra totalmente em prática. Ao longo da transição, vamos ter custos de adaptação", alerta o advogado. Para empresas com fluxo de caixa já comprometido, os custos de adaptação com revisão de contratos, atualização de sistemas, precificação e logística podem representar o golpe final.

Gonzaga adverte que esse risco regulatório precisa ser incluído nos planos de recuperação. "Todo o fluxo de caixa projetado tem que ser readequado. As empresas tendem a ter uma tributação maior ou, no mínimo, um custo adicional de adaptação que consome recursos", afirma. Em um ano de crédito restrito, gastar caixa com burocracia é inviável para muitas companhias.

Agir rápido virou questão de sobrevivência

Diante deste cenário, a mensagem dos especialistas é unânime: a era do amadorismo acabou. A gestão financeira precisa ser protegida contra a volatilidade externa.

Para os credores, a passividade tornou-se um risco inaceitável. "Agir cedo deixou de ser uma vantagem para se tornar uma necessidade", afirma Leite. A execução de dívidas e a investigação patrimonial devem ser antecipadas para evitar que o credor se depare com uma empresa sem ativos quando a recuperação judicial for inevitável.

"Esperar é um risco que poucos podem correr", conclui o advogado. Para as empresas devedoras, a lição é a transparência e a agilidade no diagnóstico. Postergar o enfrentamento da crise, esperando uma melhora súbita da economia ou um corte drástico de juros que não virá em 2026, leva à falência. O consenso é de que o dia a dia do caixa das empresas permanecerá hostil.