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No dia 10 de novembro, o jornalista alemão Paul Badde faleceu, aos 77 anos, em uma pequena vila italiana. Por mais de duas décadas ele foi vaticanista do Die Welt, um dos principais jornais da Alemanha, e também colaborava com o canal católico norte-americano EWTN; conhecia Joseph Ratzinger desde que ele era arcebispo de Munique, e trabalhou ativamente em defesa do pontificado de Bento XVI junto à opinião pública. Mas, nos últimos anos, ele ficou especialmente conhecido por promover e defender a origem sobrenatural do Véu de Manoppello, ou Santa Face de Manoppello – uma relíquia venerada na vila italiana de mesmo nome, onde Badde passou os últimos dias de vida e onde foi sepultado.
A Santa Face de Manoppello é um pedaço de pano retangular, com a imagem de um rosto humano. “É Ele, Bob. É Ele”, dizia Badde a seu amigo Robert Moynihan, outro experiente vaticanista – no caso, o “Ele” era o próprio Cristo. De acordo com Moynihan, Badde acreditava que a imagem teria se formado no momento da ressurreição de Cristo, opinião compartilhada por outras pessoas que estudaram o véu, como a irmã trapista Blandina Schlömer e o jesuíta Heinrich Pfeiffer, que foi professor de História da Arte na Pontifícia Universidade Gregoriana até 2009. Pfeiffer, no entanto, também chamava a Santa Face de “véu de Verônica”. Mas Verônica não foi aquela que enxugou o rosto de Jesus – episódio recordado na sexta estação da Via Sacra – antes de ele ser crucificado?
“‘A tua face, ó Senhor, eu procuro’: procurar a face de Jesus deve ser o anseio de todos nós, cristãos; de fato, nós somos ‘a geração’ que neste tempo procura a sua face, o rosto do ‘Deus de Jacó’.”
Papa Bento XVI, durante visita ao santuário da Santa Face de Manoppello, em 2006.
Objetos diferentes respondem pelo mesmo nome
A solução do dilema depende do que estamos falando – e, dependendo do que estamos falando, surgem novos problemas. Se por “véu de Verônica” entendemos o pano da sexta estação, existem pelo menos mais seis objetos dos quais se diz ser o véu de Verônica – um deles está no próprio Vaticano, e foi exposto para veneração em 6 de abril deste ano, quinto domingo da Quaresma, uma tradição em anos jubilares. Mas, a julgar pela avaliação de Pfeiffer, o jesuíta alemão não pensava assim. Uma outra possibilidade é a de que a Santa Face de Manoppello fosse o pano colocado sobre o rosto de Jesus em seu sepultamento (mencionado em João 20, 7), pois Pfeiffer também afirmava que a imagem de Manoppello foi produzida no momento da ressurreição – portanto, era um pano que tinha sido deixado na tumba de Jesus. Quando ele fala em “Verônica”, portanto, não se refere a uma personagem histórica, mas a um qualificativo do pano – “Verônica” é uma combinação de latim (vera) e grego (eikon) para “verdadeira imagem”, e a Santa Face de Manoppello representaria o verdadeiro rosto de Cristo. Mas também neste caso há um “concorrente”: o Sudário de Oviedo, venerado na Espanha (e muito, mas muito diferente da relíquia de Manoppello).
Para complicar, a história da Santa Face de Manoppello é similar à do Sudário de Turim: a partir de 1508, sabe-se com toda a certeza que o pano estava na vila de Manoppello; quanto ao paradeiro da imagem antes dessa data, só há hipóteses, como a de que ela tenha sido roubada do Vaticano no início do século 16 – um grupo de pesquisadores criou o Veronica Route Project para trabalhar na reconstrução da história tanto da Santa Face de Manoppello quanto da “Verônica” venerada no Vaticano. E, infelizmente, faltam também os elementos mais necessários para se tentar verificar a alegação de que a Santa Face de Manoppello seja, de fato, um acheiropoieton – termo grego para “não feito por mãos (humanas)” – como seriam outras relíquias, a exemplo do Sudário de Turim ou da imagem de Nossa Senhora de Guadalupe: uma boa dose de estudos científicos.
Pesquisas científicas no pano são bastante escassas
Enquanto o Sudário de Turim passou por uma extensa bateria de pesquisas, isso jamais aconteceu com a Santa Face de Manoppello. Não há consenso nem mesmo sobre o material de que a relíquia é feita – Badde alegava que se tratava de “seda marinha” ou bisso, um filamento secretado por moluscos como o mexilhão e que já era conhecido na região do Mediterrâneo desde a Antiguidade; outros pesquisadores afirmam que se trata de linho. A hipótese da seda marinha é atrativa para os defensores da sobrenaturalidade da imagem porque, segundo Badde, é impossível pintar algo sobre esse material. No fim dos anos 90, Donato Vittore, da Universidade de Bari, examinou o pano com luz ultravioleta e afirmou que não havia traços de tinta, mas apenas pequenas manchas de um marrom avermelhado, que poderiam ser de sangue.
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Sem um corpo robusto de pesquisas sobre o pano, o que sobra são estudos que podem ressaltar um ou outro aspecto da Santa Face de Manoppello, mas sem oferecer nenhuma conclusão irrefutável, como no caso de historiadores da arte para quem a imagem presente no pano tem estilizações características de um certo período histórico, e que não teriam exatidão anatômica. Outro caminho foi adotado pela irmã Blandina, que encontrou sobreposições significativas entre o rosto do Sudário de Turim e o da Santa Face de Manoppello – os pesquisadores Jan Jaworski e Giulio Fanti seguiram essa trilha e de fato confirmaram algumas sobreposições, embora também tenham ressaltado diferenças importantes; por exemplo, enquanto o Sudário de Turim tem uma forte tridimensionalidade, na Santa Face de Manoppello essa característica é muito fraca.
Não sei até que ponto há alguma pressão da comunidade científica ou de sindonologistas para examinar a Santa Face de Manoppello com o mesmo rigor aplicado ao Sudário de Turim. Para mim, submeter a relíquia ao exame científico não faria mal – claro, desde que tudo fosse feito de modo a preservar o objetivo. Ao menos algumas das perguntas que permanecem a respeito do pano seriam respondidas, e a partir daí seria possível avançar com hipóteses mais realistas.
Bento XVI visitou a Santa Face de Manoppello em 2006
Em 2006, o papa Bento XVI esteve em Manoppello e visitou o Santuário da Sagrada Face. No belo discurso que fez aos fiéis e às autoridades eclesiásticas ali presentes, o pontífice evitou qualquer tipo de “veredito oficial” sobre a autenticidade da relíquia – assim como a Igreja também não tem nenhuma avaliação definitiva sobre o Sudário de Turim. Falou da “Face de Cristo que aqui se venera”, descreveu Manoppello como um “lugar onde podemos meditar sobre o mistério do amor divino, contemplando o ícone da Santa Face”, e centrou sua meditação nos vários textos bíblicos que falam sobre procurar e contemplar o rosto de Deus. E, mesmo que o papa não tenha dito isso, a conclusão é muito evidente: ainda que o ícone não seja o que se diz dele, continuará a ser uma recordação de que o cristão deve levar sua vida como uma contínua busca por estar face a face com Deus na eternidade.



