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O país inteiro sabia, desde que Alexandre de Moraes decretou a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro, em agosto, que o ministro do Supremo só estava aguardando um pretexto para enviar Bolsonaro para a prisão. Mas os meses se passaram e, na falta de um pretexto real, Moraes resolveu inventar um. Na manhã deste sábado, o ministro ordenou a prisão preventiva do ex-presidente, que foi levado no início da manhã à Superintendência da Polícia Federal em Brasília, onde ficará em cela especial.
A situação anterior de Bolsonaro, a bem da verdade, já era uma anomalia do ponto de vista processual penal. A prisão domiciliar é um regime de cumprimento de prisão, uma concessão para que um investigado, réu ou condenado possa permanecer em casa enquanto está em prisão preventiva ou cumpre a pena a que foi condenado. Mas Moraes não havia decretado a prisão preventiva em agosto; tampouco havia (e não há até agora) qualquer ordem para que Bolsonaro comece a cumprir a pena a que foi injustamente condenado no show trial do suposto “golpe de Estado”. Ou seja, o ministro havia ordenado um regime de cumprimento de prisão sem uma ordem de prisão processualmente correta. Era apenas mais um abuso em uma longa lista deles, até porque a ordem de prisão domiciliar só foi possível porque Moraes montou uma arapuca inescapável para o ex-presidente; e, de tão normalizadas que as arbitrariedades se tornaram, uma a mais não custaria nada.
Tumultos passados não são garantia de tumultos futuros, e o 8 de janeiro não pode ser invocado ad aeternum para impedir ou tratar como criminosas quaisquer outras manifestações de apoio a Bolsonaro
Para mandar Bolsonaro à cela na PF, Moraes usou como pretexto uma vigília de oração convocada por um dos filhos do ex-presidente, o senador Flávio Bolsonaro, para a noite deste sábado. O evento nem aconteceria diante da residência do ex-presidente, mas em um local nas proximidades. Bastou para que o ministro visse naquilo um chamado para a repetição do 8 de janeiro. Moraes fala em “utilização de manifestações populares criminosas” e “reunião ilícita”; faz exercícios forçados de futurologia e dá como certo que haverá “tumulto”; dá como certo que a finalidade do que chama de “suposta ‘vigília’” é, na verdade, “obstruir a fiscalização das medidas cautelares e da prisão domiciliar pela Polícia Federal e pela Polícia Penal do Distrito Federal” e “estratégia para possibilitar a sua fuga do distrito da culpa e para se furtar à aplicação da lei penal”.
Os absurdos são inúmeros, a começar pela criminalização da manifestação, um direito garantido em cláusula pétrea constitucional. A intenção anunciada é a de rezar pelo ex-presidente e pelo retorno da democracia no Brasil; não há nenhum elemento que permita tirar as conclusões que Moraes tira em sua decisão. Tumultos passados não são garantia de tumultos futuros, e o 8 de janeiro não pode ser invocado ad aeternum para impedir ou tratar como criminosas quaisquer outras manifestações de apoio a Bolsonaro. Moraes usa ilações que lhe são muito convenientes para dar como certo que uma reunião convocada com uma determinada finalidade tem um objetivo diverso, mas em democracias a Justiça não funciona assim, com a pretensão de saber o que se passa na cabeça das pessoas. Além disso, teria bastado a Moraes deslocar um contingente razoável de forças de segurança para o momento da vigília, de modo a garantir que a situação não saísse do controle.
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Falando em forças de segurança, é notável a desconfiança do ministro na competência da polícia do Distrito Federal, pois a ordem de prisão deixa subentendido que os policiais cairiam como patinhos no truque dos apoiadores de Bolsonaro; que seriam incapazes de entrar no condomínio para, por exemplo, executar uma eventual ordem de prisão futura, decorrente do trânsito em julgado do “julgamento do golpe”; ou que deixariam o ex-presidente escapar de casa – uma casa monitorada 24 horas por dia – para se esconder em embaixadas que ficam não no quarteirão ao lado, mas a mais de 10 quilômetros do condomínio. A esse respeito, aliás, o fato de Eduardo Bolsonaro e Carla Zambelli terem deixado o Brasil jamais poderia servir de argumento para a decretação da prisão preventiva de Bolsonaro, já que é princípio básico do Direito que uma pessoa não pode pagar pelos atos de outra.
Para dar algum lastro à teoria segundo a qual é certo que Bolsonaro pretende fugir e usaria o “tumulto” da vigília de oração para tal, Moraes alega, ainda, uma suposta violação da tornozeleira eletrônica. No entanto, o pedido de prisão preventiva já tinha sido feito pela Polícia Federal antes do registro de falha, ocorrido na madrugada de sábado. A defesa de Bolsonaro alegou que o ex-presidente usou um ferro de solda na tornozeleira “por curiosidade” – uma enorme tolice, sem dúvida, ainda mais quando se sabe que isso daria a Moraes um tão desejado motivo para colocar Bolsonaro na cadeia. No entanto, o próprio Bolsonaro facilitou a averiguação da tornozeleira pelos agentes da PF, e, como lembrou à Gazeta do Povo o constitucionalista Alessandro Chiarottino, ainda haveria outras providências a tomar nestes casos, antes da decretação de uma prisão preventiva.
A normalização do arbítrio pode ser pior que o próprio arbítrio quando permite que sigamos vivendo sob um regime antidemocrático
Mesmo com essa enorme lista de contradições e arbitrariedades envolvidas na decisão deste sábado, é estarrecedor ver que, passadas mais de 24 horas, a reação da sociedade civil organizada e da opinião pública seja tão pífia. À exceção dos políticos de oposição, a sociedade permanece inerte. Não falamos, é claro, daqueles para quem os fins justificam os meios e que celebram a prisão de Bolsonaro porque, quando se trata de adversários políticos, todo excesso é justificado; falamos daqueles cujo compromisso democrático deveria levá-los a reconhecer o arbítrio, ainda que tenham ojeriza ou ressalvas ao ex-presidente; e falamos principalmente daqueles que já começaram a abrir os olhos, ainda que lentamente, para o fato de termos entrado em uma autocracia judicial. Sem essas vozes que deem eco à justificada revolta dos políticos de oposição, ela perde força e o que é uma denúncia autêntica de abusos reais acaba desqualificada como mero jus sperniandi.
E já sabemos que, sozinha, a oposição no Congresso não tem como botar em andamento os meios de conter o agigantamento do Supremo e sua espiral de arbítrios. A opinião pública e a sociedade civil organizada são essenciais para criar um clima político que leve o Senado a sair da letargia e funcionar como verdadeiro contrapeso ao STF, como diz a Constituição; ou que convença Hugo Motta, presidente da Câmara, a instalar a CPI do Abuso de Autoridade, que já cumpre todos os requisitos constitucionais para sua abertura. A normalização do arbítrio pode ser pior que o próprio arbítrio quando permite que sigamos vivendo sob um regime antidemocrático, que promove perseguição política disfarçada de cumprimento da lei.