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No canto direito do palco da Sala São Paulo, o jurista Ives Gandra da Silva Martins observava em silêncio. Sentado em sua cadeira de rodas, com uma caneta e um caderno nas mãos, fazia anotações como quem segue o hábito diário de meditação e reflexão, o mesmo com que, todas as manhãs, participa da missa na Paróquia Nossa Senhora do Brasil, no Jardim Europa, em São Paulo.
Aos 90 anos, o maior jurista vivo do país foi celebrado na noite de segunda-feira (10) em uma cerimônia marcada pela reverência e pela admiração. O evento, proposto pelo deputado estadual Lucas Bove (PL) em parceria com a Associação Comercial de São Paulo (ACSP) e a FecomercioSP, reuniu figuras de destaque da política, do Judiciário e do meio empresarial.
Entre os presentes, estiveram o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), o ex-presidente Michel Temer (MDB), o prefeito Ricardo Nunes (MDB), o arcebispo metropolitano Dom Odilo Scherer e o secretário estadual Gilberto Kassab, todos reunidos para homenagear um homem cuja erudição e serenidade marcaram gerações.
“Eu sou apenas um professor e advogado que exerceu a cidadania”, disse o homenageado à Gazeta do Povo. “Sempre fiz questão de usar a palavra como a última e única arma que existe na democracia, e lutar pelos valores que acredito.”
Com a serenidade e a modéstia habituais, Ives agradeceu. “Estou convencido de que a cerimônia é muito maior do que eu mereço, mas fico sensibilizado por essa demonstração de amizade. Gostaria que todo brasileiro compreendesse que o exercício da cidadania se faz com o uso da palavra, com coragem, responsabilidade e respeito às outras pessoas.”
Nove atos para nove facetas
A cerimônia foi dividida em nove atos, cada um dedicado a uma das múltiplas faces do homenageado. O roteiro traçou o retrato completo de um homem que é, ao mesmo tempo, jurista, católico, humanista, advogado, professor, poeta, amigo, patriarca da família e são-paulino.
Michel Temer falou sobre o Ives jurista. Dom Odilo Scherer tratou do católico. Tarcísio de Freitas destacou o humanista. Luiz Flávio D’Urso celebrou o advogado. O ex-desembargador Fábio Prieto lembrou o professor. Júlio Medaglia, o poeta. Wilson Victorio Rodrigues, descreveu o amigo. Ângela Gandra, filha do jurista, falou sobre o patriarca da família. E Júlio Casares, presidente do São Paulo Futebol Clube, homenageou o são-paulino apaixonado.
A música teve lugar de destaque. O pianista José Eduardo Gandra, irmão de Ives, apresentou Lenda nº 2: São Francisco de Paula Caminha sobre as Ondas, de Franz Liszt. O coral da Associação Comercial de São Paulo emocionou com Caçador de Mim, de Milton Nascimento. E a soprano Carmen Monarcha, ex-integrante do grupo do maestro André Rieu e amiga pessoal do jurista, encerrou com Ave Maria, de Gounod, e Edelweiss, canção símbolo da resistência à anexação da Áustria pela Alemanha nazista, cuja história Ives fez questão de lembrar.
Mais do que uma solenidade, a noite foi um gesto coletivo de reconhecimento a uma trajetória que atravessou o Direito, a política e a cultura. Reuniu, sob o mesmo teto, gerações que veem em Ives Gandra um exemplo de sabedoria, civilidade e fé.
A defesa da liberdade de expressão e o silêncio do STF
Entre os discursos, o do secretário de Justiça e Cidadania de São Paulo, Fábio Prieto, foi um dos mais aplaudidos. Ex-juiz do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-SP), ele exaltou o professor, título que, ao lado de advogado, o próprio Ives considera o mais nobre.
“Você nunca parou de exercer o magistério, no sentido mais profundo”, afirmou. “Hoje você é professor de algo ainda mais importante: o direito de expressão, o direito de falar aquilo que desejamos falar.”
Prieto reforçou o legado de Gandra na defesa da liberdade e da moderação em tempos de radicalismo. “O povo brasileiro gostou da liberdade e quer continuar opinando, quer dizer o que sente. E quem ensina isso, com coragem, simplicidade e erudição, é o professor cívico Ives Gandra da Silva Martins.”
Os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal foram convidados, mas nenhum compareceu. A ausência foi notada. O silêncio do tribunal contrastou com a homenagem calorosa de um público que via no jurista um símbolo de resistência intelectual em meio a tempos de tensionamento entre os Poderes.
Prieto ainda destacou a relevância de Ives como tributarista liberal. “Ele ensinou que todos nós temos o direito de contestar a expropriação da nossa propriedade feita pela tributação excessiva, inconstitucional e abusiva. Defendeu o direito tributário como a proteção da propriedade, do trabalho e do futuro”, disse.
A fé, o amor e a serenidade do jurista
Ao final da cerimônia, o homenageado, visivelmente emocionado, afirmou estar com o “coração dilacerado e sem palavras”. Em seguida, recitou um poema que havia escrito naquela manhã, dedicado à esposa Ruth Vidal da Silva Martins, com quem foi casado por 66 anos e que faleceu em 2021.
Um grande painel ao fundo do palco mostrava a foto do casal e uma frase do jurista: “Deus é nosso último encontro. Que tudo façamos para poder contemplá-lo, pedindo-lhe misericórdia, mas com a certeza de que lutamos.”
A filha Ângela revelou a resposta preferida do pai ao aconselhá-lo a descansar: que ele deseja “morrer em pé, como as árvores”. “Nesse sentido, ele é uma sequóia”, brincou ela, em referência às árvores de grandiosidade inigualável em tamanho e longevidade.
A plateia respondeu com aplausos longos, emocionados. Entre familiares, juristas, políticos e amigos, um sentimento era unânime: o desejo de celebrar, daqui a dez anos, o centenário de um homem cuja vida é sinônimo de serviço, fé e amor ao Brasil.