Redes sociais
Nos últimos anos, o chamado “cancelamento” tornou-se um fenômeno social marcante das redes digitais. (Foto: Julian Christ/Unsplash)

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Um tweet fora de contexto. Uma fala antiga. Um vídeo viralizado. Bastam segundos para alguém ser cancelado nas redes sociais. O julgamento é rápido, coletivo e quase sempre cruel. Nos últimos anos, o chamado “cancelamento” tornou-se um fenômeno social marcante das redes digitais. Trata-se de uma prática coletiva em que internautas se unem para expor, criticar e boicotar uma pessoa, pública ou anônima, em razão de determinada conduta, opinião ou fato considerado moralmente reprovável. Embora, à primeira vista, pareça apenas uma forma de reprovação social ou exercício da liberdade de expressão, o cancelamento virtual frequentemente ultrapassa os limites da crítica legítima e assume o viés de um verdadeiro linchamento.

Com a ampla difusão das redes sociais e a rapidez com que informações – ou desinformações – circulam, os danos provocados a quem é “cancelado” podem ser devastadores: destruição de reputação, prejuízos profissionais e até consequências psicológicas graves. Diante desse cenário, emerge uma discussão relevante no campo jurídico: até que ponto a responsabilidade penal alcança aqueles que, nas redes sociais, transformam a crítica em linchamento virtual?

O fenômeno do cancelamento revela uma inquietante regressão social no século XXI. Com todo o avanço jurídico e tecnológico, observa-se o retorno a práticas semelhantes às das sociedades antigas, nas quais a justiça era feita 'pelas próprias mãos'

A internet consolidou-se como espaço de expressão e debate público, permitindo que qualquer pessoa manifeste suas opiniões de forma ampla e instantânea. No entanto, o mesmo instrumento que possibilita a propagação de ideias também se tornou ambiente para discursos de ódio, ofensas e ataques pessoais. Nesse contexto, é essencial distinguir o que constitui crítica legítima, que enseja liberdade de expressão, do que se configura como conduta criminosa, sujeita à responsabilização penal.

A crítica legítima é aquela que se mantém dentro dos limites do respeito e da veracidade dos fatos, ainda que severa. O problema surge quando o intuito de opinar se transforma em intenção de ofender, humilhar ou destruir a reputação alheia. Em tais situações, o comportamento deixa de ser exercício de direito e passa a representar violação à honra, à imagem e à dignidade da pessoa.

Dependendo do conteúdo e da forma como a exposição é feita, os ataques nas redes sociais podem se enquadrar em diversos tipos penais. A calúnia (art. 138 do CP) ocorre quando se imputa falsamente a alguém a prática de um crime; a difamação (art. 139 do CP) caracteriza-se pela atribuição de fato ofensivo à reputação; enquanto a injúria (art. 140 do CP) se dá quando há ofensa direta à dignidade ou ao decoro da vítima. Em muitos casos de cancelamento, especialmente quando há divulgação massiva e persistente de mensagens ofensivas, também se pode configurar o crime de perseguição (stalking), previsto no art. 147-A do CP, ou ainda a incitação ao crime (art. 286 do CP) e a associação criminosa (art. 288 do CP), quando há organização para promover ataques coordenados.

Além disso, as redes sociais intensificam os efeitos desses ilícitos, uma vez que a exposição pública amplia o alcance e a permanência da ofensa, potencializando o dano à vítima. O ambiente digital rompe a lógica da comunicação interpessoal e cria uma audiência ilimitada, o que transforma pequenas ofensas em ataques de proporção coletiva, de modo que o cancelamento passa a assumir características de um linchamento moral.

No ambiente virtual, observa-se uma preocupante falta de empatia e uma dissociação entre a palavra digitada e suas consequências reais. Muitos usuários agem como se a internet fosse um espaço apartado da vida concreta, esquecendo que, do outro lado da tela, há pessoas reais, com sentimentos, reputações e vidas que podem ser profundamente afetadas por comentários e exposições indevidas. A percepção equivocada de que o que é dito online não possui o mesmo peso do que seria dito pessoalmente tem alimentado comportamentos agressivos, ofensivos e desumanizadores.

Enquanto no convívio presencial a censura social e o contato direto impõem freios naturais à conduta, no ambiente digital prevalece uma sensação ilusória de anonimato e impunidade, que reduz a responsabilidade individual e incentiva ataques coletivos.

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O fenômeno do cancelamento revela uma inquietante regressão social no século XXI. Com todo o avanço jurídico e tecnológico, observa-se o retorno a práticas semelhantes às das sociedades antigas, nas quais a justiça era feita “pelas próprias mãos”. Antes da consolidação do Estado e do sistema jurídico formal, vigorava a lógica da vingança privada, sem mediação institucional ou garantia de defesa. Hoje, nas redes sociais, repete-se essa dinâmica sob nova perspectiva: usuários assumem o papel de juízes e executores morais, decretando punições sumárias em nome de uma suposta justiça coletiva.

Esse comportamento representa não apenas um retrocesso civilizatório, mas também uma ameaça à própria legitimidade da justiça. Quando a internet se transforma em um “tribunal informal”, afastam-se os valores de ética e justiça que norteiam o Direito contemporâneo, criando-se uma espécie de justiça primitiva digital, na qual o clamor público se sobrepõe às instituições e a vingança se disfarça de responsabilidade social.

A esse cenário soma-se um descompasso entre a velocidade da tecnologia e a lentidão do Direito. As transformações digitais ocorrem em ritmo acelerado, enquanto a legislação ainda busca meios de acompanhar essas novas formas de interação e conflito. Essa defasagem agrava a insegurança jurídica e cria uma zona cinzenta na qual os limites entre a liberdade de expressão e a responsabilidade penal permanecem imprecisos.

Assim, o desafio contemporâneo consiste em reconectar o mundo virtual à realidade humana, resgatando a consciência de que cada palavra proferida online carrega o mesmo potencial de dano – ou até maior – que aquela dita pessoalmente. O progresso tecnológico, para ser ético e sustentável, precisa vir acompanhado de maturidade social, empatia e efetiva responsabilização pelos abusos cometidos nas redes. Portanto, o desafio contemporâneo está em equilibrar a proteção à liberdade de expressão com a necessidade de coibir abusos cometidos sob o pretexto de “opinar”. O direito de crítica não é absoluto e deve ser exercido com responsabilidade, sob pena de transformar o espaço digital em campo de impunidade e violência simbólica.

Eduarda Sprea Ciscato é sócia e advogada do Ciscato Advogados Associados; Giulia Santos Prescinotto, acadêmica de Direito, é estagiária no mesmo escritório.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos