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O caso é simples, público e, ainda assim, sintomático. O advogado pernambucano Thomas Crisóstomo foi denunciado pelo Ministério Público Federal por ter escrito em uma rede social que “a EBC virou um cabide de emprego para a mulher do ex-presidiário Lula”.
O MPF afirma que a expressão ofenderia a honra do presidente. A denúncia não questiona o fato em si, apenas o direito de dizê-lo. Lula foi condenado em segunda instância, preso por 580 dias e depois beneficiado pela anulação dos processos por questões processuais, sem revisão de mérito. O dado histórico é objetivo: Lula foi preso, então é, literalmente, um ex-presidiário. Ainda assim, o Estado decidiu transformar a frase em delito.
O MPF chegou a oferecer um acordo de não persecução penal a Thomas Crisóstomo. Ele recusou. Disse que não admitiria reconhecer culpa por algo que é fato público, sustentado documentalmente e inserido no debate político. A recusa é o ponto mais importante dessa história. Quantos outros, com medo, tempo curto, recursos escassos ou filhos pequenos para sustentar, aceitaram calar? Quantos assinaram acordos para não enfrentar um processo, admitindo uma culpa que não existia em troca de alívio imediato? Quantos sentiram o peso do Estado e escolheram a sobrevivência ao invés da liberdade de expressão? Esse caso, público, transparente, rastreável, nos conduz à pergunta que a Gazeta do Povo tem insistido em fazer e que continua sem resposta: quantas vozes o Supremo já calou?
Não estamos falando de processos públicos como o de Thomas Crisóstomo. Estamos falando dos inquéritos sigilosos, das investigações sem réu definido, dos pedidos de quebra de sigilo que não chegam a ser tornados públicos, das medidas de restrição de fala que nunca foram sequer apresentadas ao debate democrático. Estamos falando do silêncio que não aparece no noticiário. Do silêncio sem rosto, sem nome, sem registro.
A retórica oficial insiste em dizer que vivemos uma era de defesa da democracia. Mas democracia não é apenas manter eleições. Democracia é garantir que o cidadão possa criticar o governante. Mesmo quando exagera. Mesmo quando é duro. Mesmo quando fere sensibilidades
O que se vê é um Estado que se tornou minucioso na vigilância do discurso político e, ao mesmo tempo, displicente com crimes concretos. É como se a frase fosse mais relevante do que o fato que ela descreve. Como se a sensibilidade de determinadas pessoas importasse mais do que a legitimidade da crítica. A distorção é evidente: o sistema penal, que deveria proteger a sociedade contra violências reais, está sendo usado para proteger autoridades contra desconforto.
Quando o Estado deixa de punir crimes para punir palavras, ele desloca o centro moral da lei. O problema deixa de ser a conduta e passa a ser a opinião sobre a conduta. E, nesse ponto, a democracia é desfigurada. Porque a democracia exige fricção, conflito, ironia, provocação, confronto de interpretações. Não existe vida política adulta sem o direito de chamar as coisas pelo nome que os fatos sustentam.
O episódio também expõe a contradição mais profunda do discurso institucional brasileiro. A retórica oficial insiste em dizer que vivemos uma era de defesa da democracia. Mas democracia não é apenas manter eleições. Democracia é garantir que o cidadão possa criticar o governante. Mesmo quando exagera. Mesmo quando é duro. Mesmo quando fere sensibilidades. Soberania popular significa que o presidente não está acima do povo e muito menos acima da linguagem.
O que se está tutelando aqui não é a honra, mas a narrativa. E quando o Estado passa a tutelar narrativas, o resultado não é estabilidade, é medo. O cidadão começa a se perguntar o que pode ou não dizer, a medir palavras, a calcular cada vírgula antes de postar um comentário banal. A esfera pública, nesse ambiente, deixa de ser local de debate e se torna campo minado. A autocensura se torna hábito. O silêncio se torna prudência.
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E é aí que a pergunta da Gazeta do Povo volta a ecoar. Se este é o tratamento dado a um caso público, registrado, conhecido, acompanhado pela imprensa, o que acontece nos casos que não chegam ao noticiário? Quantos processos, quantos inquéritos, quantas notificações foram aceitos sem questionamento para não “ter problema”? Quantos se calaram antes mesmo de falar?
O mais grave não é o que se vê. O mais grave é o que não se ouve. O processo contra Thomas Crisóstomo, no fim das contas, não é sobre a frase que ele escreveu. É sobre quem pode descrever a realidade e quem pode proibi-la. Quando o Estado decide que um fato se torna ofensivo ao ser mencionado, não estamos diante de proteção da honra, mas de controle da narrativa. E controlar a narrativa é controlar o imaginário, o horizonte das possibilidades, o próprio limite do que pode existir como pensamento público.
Por isso essa história não termina no episódio individual. Ela interpela o país. Porque uma sociedade que cala os que a descrevem se torna refém de sua própria mentira. E mentira de Estado tem consequências práticas: ela modela consensos artificiais, produz medo difuso, enfraquece a confiança social e, pouco a pouco, apaga a noção de cidadania. Não há democracia em que o cidadão precise pedir permissão para dizer o óbvio.
A pergunta volta, então, mais grave, mais urgente, mais profunda: se um comentário público, baseado em registros oficiais, pode se tornar crime, o que exatamente ainda podemos dizer? Até onde vai o perímetro do permitido? E quem o delimita?
É aqui que a questão proposta pela Gazeta do Povo ganha sua dimensão verdadeira. O caso de Thomas Crisóstomo é visível, rastreável, contestável. Mas há uma zona inteira de silêncio que se estende por inquéritos sigilosos, decisões sem publicidade, acordos aceitos por medo, autocensuras que nunca chegam às notícias. Ali está o campo mais perigoso. Não o grito reprimido, mas a voz que nunca chegou a nascer.
Se o Supremo e o sistema de Justiça não responderem claramente a essa pergunta, se não delimitarem com precisão o que é direito de crítica e o que é ataque real, se não devolverem ao debate público a coragem da divergência, o país não estará apenas cerceando palavras. Estará diminuindo a consciência e atrofiando a própria liberdade. Porque quando a sociedade se acostuma a calar, ela não cala apenas o que pensa. Cala também o que é. Uma democracia que cala o que é já deixou de existir.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos
