Famílias destruídas: Agro gaúcho denuncia irregularidades e suicídios em crise bilionária

Em audiência no Senado, produtores e representantes do setor relatam juros de 25% e venda casada; Bacen admite que modelo de crédito “não se sustenta”, mas nega abusos

  • Por Bruno Pinheiro
  • 23/11/2025 10h33 - Atualizado em 23/11/2025 10h33
Saulo Cruz/Agência Senado Comissões de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), e de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) promovem audiência pública conjunta para debater as providências do Governo Federal diante da gravidade da situação de endividamento dos produtores rurais do Rio Grande do Sul Comissões de Agricultura e Reforma Agrária (CRA) e de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) promovem audiência pública conjunta para debater situação de endividamento dos produtores rurais do RS

“Mais de 30 famílias foram destruídas”. A denúncia de Arlei Romeiro, presidente da Associação dos Produtores e Empresários Rurais (Aper), abriu uma audiência pública no Senado Federal que expôs as feridas de uma crise humanitária e de crédito que assola o campo no Rio Grande do Sul. Longe das planilhas de Brasília, produtores rurais relataram um cenário de abusos por parte de instituições financeiras, com juros que ultrapassam 25%, venda casada e apropriação de terras, em meio a um colapso que já levou a suicídios e perdas de bilhões desde 2020.

A resposta do Banco Central (Bacen) e do Ministério da Fazenda, no entanto, foi recebida como um balde de água fria, aprofundando o abismo entre a burocracia federal e a realidade trágica vivida pelos agricultores.

O rosto humano da dívida

‘Não é só economia, há suicídio’

A senadora Damares Alves (Republicanos-DF), presidente da Comissão de Direitos Humanos, deu o tom da gravidade da situação: “Não é só economia. Há suicídio, depressão e crianças vivendo em desespero. A dignidade humana está em risco”.

Arlei Romeiro detalhou que o problema é crônico e anterior às recentes calamidades climáticas. Segundo ele, a forma como as políticas de crédito rural sao conduzidas, especialmente por cooperativas de crédito, é um “evento adverso que vem de longa data” e que resultou na destruição de famílias, pressionadas a abandonar suas terras mesmo quando havia alternativas legais para se reerguerem.

“São ilegalidades e irregularidades cometidas pelas instituições financeiras que levaram à destruição de famílias”, afirmou Romeiro.

Raphael Barra, da Associação Brasileira de Defesa do Agronegócio (Abdagro), foi ainda mais longe, acusando o sistema financeiro de tratar os agricultores como “números que estão sendo subjugados” e relatando a existência de contratos com juros que ultrapassam 25% ao ano, além da prática ilegal de “venda casada”.

Irregularidades denunciadas

Apropriação de bens – Instituições financeiras se apropriando de terras e produção, prática negada pelo Bacen, mas relatada pelos produtores;

Juros abusivos – Contratos com taxas de juros que superam 25% ao ano, tornando a dívida impagável;

Venda casada – Exigência ilegal de contratação de outros produtos para a liberação do crédito rural;

Pressão psicológica – Produtores pressionados a abandonar a atividade, com relatos de suicídio e depressão;

A dissonância de Brasília: Contradição no Bacen e falácia na Fazenda

A reação do aparato estatal às denúncias foi um choque de realidade para os produtores. Cláudio Filgueiras, chefe do Departamento de Regulação do Crédito Rural do Bacen, primeiro negou veementemente as irregularidades, tratando as denúncias como uma “surpresa” e afirmando que em oito anos “nunca viu uma instituição financeira receber em soja”.

No entanto, em outro momento, o mesmo representante do órgão regulador admitiu a falência completa do sistema que deveria fiscalizar.

“O produtor que financia 100% do custeio, mesmo com taxas equalizadas, hoje não consegue fechar a conta. O modelo, da forma como está, não se sustenta”, declarou, Filgueiras.

Essa contradição expõe uma falha grave: se o Bacen sabe que o modelo não se sustenta, por que nega os abusos e defende as instituições financeiras em vez de investigá-las?

Se a postura do Bacen foi de contradição, a do Ministério da Fazenda, representada pelo subsecretário Francisco Erismá, foi de distanciamento e de uma narrativa que os números desmentem. Diante dos relatos de suicídio, Erismá limitou-se a afirmar que “os recursos da União são muito escassos”.

O argumento de “recursos escassos”, no entanto, foi desmontado por Antônio da Luz, economista-chefe da Farsul. Ele expôs que, a arrecadação do país é recorde, o brasileiro nunca pagou tanto impostos.

Uma luz no fim do túnel? A proposta do MAPA

A diferença de posturas ficou explícita no apelo de Graziele de Camargo, do Movimento SOS Agro.

“O Ministério da Fazenda ainda não entendeu que o produtor não é o culpado, mas o MAPA já entendeu”, afirmou, emocionada.

Essa compreensão por parte do Ministério da Agricultura não ficou apenas no discurso e na própria audiência, Irajá Lacerda, secretário-executivo da pasta, explicou o sistema VMG já em operação. A plataforma utiliza imagens de satélite e inteligência artificial para gerar um atestado digital com dados técnicos e auditáveis sobre a produção de cada talhão, comprovando quebras de safra e garantindo a rastreabilidade dos grãos.

Após ver os dados, o senador Hamilton Mourão (Republicanos-RS), que presidia a sessão destacou ser a primeira vez que via a tecnologia sendo usada de forma tão positiva. “É a primeira vez que vejo a inteligência artificial e as imagens fazendo o bem”, comentou Mourão.

Como explicou Lacerda, o objetivo é criar um “ambiente neutro com dados auditáveis verificáveis, tudo com uma metodologia escrita e reconhecida em um padrão público”. A ferramenta, portanto, tem o potencial de dar fim à subjetividade das análises e nortear a política agrícola nacional, criando um ambiente mais seguro e justo para os produtores rurais. A presença de Lacerda, “olho no olho” com os senadores, foi elogiada pela senadora Damares Alves (Republicanos-DF) como um sinal de que o Ministério da Agricultura “não quer fugir dessa grande discussão”.

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O custo da inércia

Enquanto o Bacen e a Fazenda se apegam a discursos contraditórios e a uma falsa narrativa de escassez, a crise no campo gaúcho se agrava. A conta da inércia de Brasília, no entanto, continua sendo paga com vidas, famílias e o futuro de um dos pilares da economia brasileira. Como resumiu Domingos Velho, Vice Presidente da FARSUL, em um apelo emocionado, o que está em jogo é a dignidade de um povo que se recusa a ser responsabilizado por uma tragédia sem precedentes.

“Eu me considero incompetente como gaúcho por não ter conseguido transmitir ao Brasil o que aconteceu conosco. O Rio Grande do Sul perdeu mais de R$ 320 bilhões no agro desde 2020. Perdemos meio PIB. Nenhum lugar do mundo sobreviveria a cinco secas extremas seguidas e uma enchente devastadora”, declarou.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.