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“Quem morre agora em algum lugar do mundo, sem razão morre no mundo, olha pra mim.”
(Rainer Maria Rilke)
Fui acordado por uma tempestade. Ainda estava escuro; após rezar o Angelus, lembrei-me do guarda-chuva de minha mãe. Depois que ela partiu, continuei a usá-lo por vários anos. Era como se, ao usar o guarda-chuva de Aracy, ela estivesse me protegendo do mal e da morte. Sentia-me outra vez um menino ao lado da mãe, caminhando pelas ruas do Centro de São Paulo, nos anos 70.
Hoje faz 14 anos que ela disse adeus, e não sei mais onde está o guarda-chuva.
Sobre a mesa de trabalho está o relógio de meu pai. É um relógio parado; assim como eu, acerta só duas vezes por dia. Agora, enquanto escrevo, ele está quase certo: são 11h43, e ele marca 11h29 ― apenas 14 minutos de atraso. Mas eu gosto de manter próximo esse objeto aparentemente inútil. Ao olhar para o relógio, ganho forças para lutar contra o tempo. Um dia, não precisarei mais dele. Do tempo.
Numa tarde, há alguns anos, saí com o guarda-chuva de minha mãe e fui até o shopping para tomar um suco de laranja. Ali encontrei o Renato. Não éramos exatamente amigos, mas gostávamos de conversar. Ele sempre vinha do mesmo jeito: surgia do nada, como um personagem que aparece no palco sem passar pelas coxias.
E dizia:
― Paulo...
Paulo também era o nome do meu pai ― e ele também surgia assim, de repente, do nada, em silêncio. Naquele instante, senti como se Paulo estivesse me enviando algum recado por intermédio do Renato.
Renato estava com as roupas ensopadas de chuva. Usava uma camisa polo preta e se sentou meio de lado, como se estivesse pronto para sair a qualquer momento.
― Como vai, Paulo? Eu não gosto de shopping. Mas hoje decidi vir.
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Falei vagamente sobre o calor, sobre a chuva, e acrescentei que o shopping sempre foi um ambiente protegido dos humores do tempo. Ofereci-lhe suco de laranja, mas ele não aceitou. Olhou de repente para mim, colocou a mão sobre meu ombro esquerdo e perguntou:
― Paulo, como você lidou com a morte de sua mãe?
Pensei no dia em que esperávamos minha mãe sair da cirurgia no Hospital do Câncer. Mas, antes de minha mãe, veio o médico. Veio para dizer que havia poucas esperanças.
Então eu disse a Renato que a dor não acaba nunca, mas, com o tempo, é como se a pessoa fosse entrar pela porta a qualquer instante.
― Você deve saber mais ou menos como é, Renato, porque perdeu seu pai há muito tempo.
O pai de Renato morreu em um acidente aéreo, nos anos 80. Ele sempre me contava a história dessa perda com detalhes: a estranha melancolia do pai antes da viagem; o fato de que dois aviões se chocaram no ar; a queda de um avião no rio e outro na terra, sendo que no primeiro houve sobreviventes e, no segundo, nenhum.
Aí ele me olhou nos olhos novamente:
― Minha mãe morreu há uma semana. Tenho que aprender a viver sem ela.
Foi a minha vez de colocar a mão sobre o ombro esquerdo de meu amigo. Para sempre, Renato e eu seremos irmãos.
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