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Religiões estão priorizando a discussão ética sobre o uso da inteligência artificial. (Foto: Hannibal Hanschke/EFE/EPA)

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Nem sempre a inteligência artificial é mesmo inteligente. Dias atrás, fui pesquisar sobre a prorrogação dos cargos dos chefes de dicastério decretada pelo papa Leão XIV no início de seu pontificado, e a IA do Google me respondeu que “o papa Leão XIV (um papa fictício, pois o último foi Leão XIII) confirmou provisoriamente os chefes de dicastérios da Cúria Romana (...) As notícias referem-se a eventos ocorridos em maio de 2025, indicando que a figura do papa Leão XIV faz parte de um contexto de notícias futuristas ou hipotéticas” – e isso quase seis meses depois do conclave! Talvez a IA do Google seja sedevacantista... Mas, brincadeiras à parte, estamos vendo uma movimentação importante de igrejas e líderes religiosos em relação à inteligência artificial. Roma tem fervilhado de eventos sobre esse tema nos últimos dias.

Na próxima segunda-feira, a Federação Internacional das Associações de Médicos Católicos e a Pontifícia Academia para a Vida iniciam um encontro de três dias intitulado “Inteligência Artificial e Medicina: o desafio da dignidade humana”, com discussões sobre o uso da IA no processo médico, inclusive na tomada de decisões e na administração de sistemas de saúde. Ontem, dia 7, terminou um outro evento, de dois dias, o Builders AI Forum, na Pontifícia Universidade Gregoriana, e a cujos participantes o papa Leão XIV enviou uma mensagem, exortando “todos os desenvolvedores de AI a cultivar o discernimento moral como parte fundamental de seu trabalho – para desenvolver sistemas que reflitam justiça, solidariedade e uma reverência autêntica pela vida”.

Muito mais que pensar sobre como a inteligência artificial pode ser usada para a evangelização, as religiões estão priorizando a reflexão ética sobre seu uso

Semanas atrás, também na capital italiana, ocorreu um evento ainda mais amplo, que reuniu líderes religiosos cristãos e judaicos, e professores de universidades confessionais, para tratar de várias questões relativas à utilização da inteligência artificial. O resultado final foi uma declaração de 11 páginas, defendendo a aplicação de alguns princípios ao uso da IA para que ela “seja – e continue sendo – segura, ética, e sob controle humano”, dando continuidade ao “chamado de Roma pela ética na inteligência artificial”, lançado em 2020 pelo papa Francisco. Os princípios são precisão, transparência, privacidade, segurança, dignidade humana e bem comum, e sua aplicação se dá, por exemplo, por meio do combate a vieses que perpetuem a discriminação ou incentivem a violência; do acesso total à informação sobre o uso de IA na elaboração de conteúdos; da rejeição ao uso de linguagem antropomórfica para caracterizar ferramentas de IA; do compromisso em não utilizar a IA para monitoramento de pessoas de forma que viole sua privacidade; e da recusa em fazer das IAs substitutos para os necessários relacionamentos humanos – inclusive entre fiéis e líderes religiosos.

Infelizmente, não há limite para o que gente mal-intencionada pode fazer com uma boa ferramenta de inteligência artificial na mão. Uma imagem forjada pode destruir uma reputação ou mesmo uma vida. Ferramentas de reconhecimento facial podem ser usadas para perseguição política e religiosa. Entregar a uma IA o processo decisório em temas que sejam literalmente de vida ou morte – como no caso de usos médicos ou militares – pode ter consequências catastróficas. As religiões não podem ficar de fora dessa discussão, seja como guias morais para aqueles que criam e usam as ferramentas de inteligência artificial, seja agindo publicamente na pressão por medidas regulatórias para o bom uso da IA – só cuidando para evitar cair no extremo oposto da hiper-regulação.

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Em janeiro deste ano, os dicastérios para a Doutrina da Fé e para a Educação e Cultura publicaram uma declaração conjunta, Antiqua et nova, sobre a inteligência artificial. É um documento extenso, que trata das implicações da IA em vários campos e oferece uma série de orientações morais para o bom uso das ferramentas. Antes disso, o papa Francisco já tinha tratado do tema em um discurso em uma sessão do G7 e na mensagem para o Dia Mundial das Comunicações de 2024. Imediatamente após sua eleição, em maio, Leão XIV fez referências à inteligência artificial, como em sua audiência com os jornalistas que cobriram o conclave. Além de sua mensagem para o evento que terminou nesta sexta, o papa também se dirigiu a participantes de um evento semelhante em junho.

Diante do fenômeno da inteligência artificial, as religiões têm respondido rapidamente. Muito mais que pensar sobre como essas ferramentas podem ser usadas para a evangelização, elas estão priorizando a reflexão ética sobre o uso da IA em benefício da humanidade. “Sendo cristãos, somos chamados a amar o próximo, proteger os mais fracos e cuidar da criação. Poucas tecnologias em nossa época terão impacto tão grande – positivamente ou negativamente – quanto a IA sobre nossa capacidade de cumprir esse chamado”, afirmou Kristine Torjesen, presidente da Fundação BioLogos, sobre sua participação no evento de outubro em Roma. “A inteligência artificial avança rapidamente – às vezes mais rapidamente que nossa reflexão moral –, mas existe um movimento crescente de pessoas para as quais a fé exerce um papel vital, orientando sobre como devemos usar a IA”, acrescentou. Diante de todos os possíveis maus usos da inteligência artificial, muita coisa depende desse movimento.