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Outro dia, ouvi de um grupo de alunos que um docente empático, recém-desembarcado na universidade, disse, com ar sério e constrito, que não daria provas com consultas, pois, se permitisse a consulta aos textos no formato eletrônico, os alunos recorreriam à IA e, se restringisse somente ao papel, estaria cometendo uma injustiça social, já que nem todos poderiam comprar o livro ou pagar a fotocópia. Piada de corredor? Talvez, mas traduz magistralmente a completa perda de rumo da universidade contemporânea, que, de tanto militar em causas que lhe são absolutamente estranhas, não sabe mais, melhor, não se interessa mais pela sua missão basilar: produzir conhecimentos e profissionais capazes de fazer avançar a sociedade em que se inserem.
Uma rápida passada de olhos pelas muitas páginas das instituições públicas de ensino superior disponíveis na Internet dão ao leitor uma excelente ideia do tamanho do impasse. Há aí um pouco de tudo. Algumas criaram, inclusive, setores burocráticos inteiros para lidar com problemas relativos à inclusão e à assistência social; são miniministérios da Felicidade incrustados no seio da burocracia universitária, todos encarregados de garantir o completo bem-estar físico e emocional dos alunos – seres sensíveis ao extremo, que demandam muita proteção e auxílio.
Incentivados pelos Ministérios da Felicidade, que constantemente entopem o ambiente universitário com milhares de comunicados, cartazes e vídeos politicamente corretos, todos estão sempre de prontidão: vigiam os pronomes de tratamento, o vocabulário, as vestimentas, as estampas de camiseta, as postagens em redes sociais
Há alguns anos, quando a busca pela justiça cósmica ainda engatinhava nos ambientes universitários, essas instituições ofereciam somente moradia, comida subsidiada e pequenas bolsas, sempre vinculadas a alguma atividade ou serviço acadêmico desenvolvido pelo discente. Hoje, abrigadas sob o guarda-chuva “ações afirmativas”, a assistência material ampliou-se muito e consome uma quantia razoável do dinheiro de quem paga impostos. Prosseguem, é certo, a moradia e a comida subsidiada, mas ambas ganharam alguns incrementos.
Os restaurantes universitários já não servem somente aquela gororoba capitalista de outrora, gororoba não sustentável e muitas vezes promotora do sacrifício animal; hoje, para atender a corpos e espíritos muito mais sensíveis e exigentes, as instituições oferecem comida vegana, comida orgânica e até mesmo comida comprada exclusivamente de movimentos sociais – uma concessão woke ao socialismo raiz. A habitação também teve algum ganho, mas foi pouco e não ultrapassou os cobiçados auxílios-aluguel, um luxo privado no mundo coletivista das moradias.
As bolsas e auxílios, no entanto, passaram a ter um alcance e adquiriram características nunca dantes imaginadas. De saída, perderam ou afrouxaram os vínculos que mantinham com o percurso acadêmico do auxiliado – muitas vezes não se cobram, do usuário do auxílio, nem sequer boas notas, aprovação ou presença nas aulas. Ao discente, neste mundo que se quer obcecado com as reparações de injustiças, mais vale encaixar-se num dos muitos grupos de vítimas dos excessos perpetrados pela sociedade capitalista, branca, racista, machista, sexista, capacitista, homofóbica, transfóbica, e por aí vai.
As injustiças e os injustiçados são muitos, e cabe à universidade dar a cada um, ao menos ao longo de um quadriênio ou um pouco mais, a reparação que lhe é de direito. Tudo mais – baixa qualidade do ensino e da pesquisa, avanço do analfabetismo funcional no meio universitário, perda de contato com a realidade circundante (a tal bolha universitária), falta de hábito de leitura, evasão crescente e outras tantas mazelas – virá a reboque e resolver-se-á quando a justiça social for restaurada, ao menos no mundo universitário.
E para que o jovem estudante, recém-desgarrado de sua família, descubra de qual mazela da dita sociedade tradicional foi vítima, muitas universidades oferecem cursos, palestras, grupos, “rodas de conversa” e outras atividades motivacionais do gênero, muito similares àquelas palestras vocacionais de antigamente, para que o neófito ainda indeciso, tal qual estava outrora em relação a que curso escolher, se encaixe no grupo de vítimas que melhor lhe convém.
O jovem que não escolhe nenhum – a maioria deles, em geral – jovens que estão ali somente para adquirir os conhecimentos necessários para bem exercer uma profissão ou fazer pesquisa, estão condenados a um quadriênio de penúria assistencial e indiferença espiritual; se forem sagazes e falantes, estão perdidos, serão sistematicamente hostilizados e calados, pois além de não serem vítimas de algo ou de alguém e não militarem por uma causa justa qualquer, querem oprimir os outros com exibições de sapiência.
A universidade, porém, na sua ânsia por restaurar um mundo justo, vai além: investe pesado em proteger os injustiçados para que não sejam injustiçados de novo justamente no ambiente universitário, um ambiente tão comprometido com os direitos humanos e tudo mais. A rede de proteção é enorme e os seus executores estão sempre atentos – vigilantes – e contam com a pronta e efusiva contribuição das eventuais vítimas, que se vigiam mutuamente e vigiam os outros, transformando a universidade numa verdadeira Stasi, aquele serviço secreto da Alemanha Oriental que metamorfoseou a maioria dos cidadãos do país em espiões e delatores dos seus vizinhos e parentes.
Incentivados pelos Ministérios da Felicidade, que constantemente entopem o ambiente universitário com milhares de comunicados, cartazes e vídeos politicamente corretos, todos estão sempre de prontidão: vigiam os pronomes de tratamento, o vocabulário, as vestimentas, as estampas de camiseta, as postagens em redes sociais, as amizades, as pichações de banheiro – que, quando demasiado ofensivas, suscitam notas de repúdio das direções – e até mesmo o conteúdo das disciplinas; afinal, vai que o professor desavisado se mete a ensinar “ideias perigosas”, elitistas, ideias que ofendem a gigantesca suscetibilidade dos discentes. E não se enganem, atingimos um patamar tão elevado de insanidade em determinadas universidades, que a vigilância e a delação passaram a ser incentivados por aqueles docentes e gestores que há muito deixaram de se dedicar ao conhecimento e hoje, neste mundo woke, vivem praticamente das e para as mesmas causas dos discentes.
Depois se perguntam por qual razão a violência explode na universidade, um ambiente tão plural e zeloso com a tolerância; por qual razão discentes julgam que têm o direito, ou melhor, o dever de agredir e calar docentes ou colegas que defendem ideias supostamente perigosas e elitistas. Ora, a resposta salta aos olhos e a história está repleta de ilustrações: bombardeie jovens malformados – creio que ninguém discorda que a nossa escolaridade básica é ruim, por isso temos cotas no vestibular, é bom lembrar – com meia dúzia de chavões; encaixe-os num grupo de supostos ofendidos pela sociedade; diga-lhes constantemente que merecem reparação pelo seu sofrimento; ensine-lhes que terem vivido tal afronta lhes dá todos os direitos do mundo e ameniza todas as suas faltas; convença-os, por fim, de que a suposta opressão que se abateu sobre eles tornou-os, sem qualquer esforço intelectual, portadores de verdades axiomáticas – o tal lugar de fala – verdades que só os tolos ou canalhas não veem.
Pronto, temos uma juventude maoísta diante de nós, autoritária e violenta, segura – pois conta com a aquiescência e a conivência de muitos “adultos” – de que detém o direito e mesmo a missão de reprimir e reeducar os hereges e infiéis pelos corredores das universidades.
Jean Marcel Carvalho França é professor titular de História do Brasil da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e autor, entre outros, dos seguintes livros: “Literatura e sociedade no Rio de Janeiro Oitocentista, “Visões do Rio de Janeiro Colonial”, “Mulheres Viajantes no Brasil”, “Andanças pelo Brasil colonial”, “A Construção do Brasil na Literatura de Viagem dos séculos XVI, XVII e XVIII”, “Piratas no Brasil“ e “Ilustres Ordinários do Brasil”.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos