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O procurador-geral da República, Paulo Gonet, durante sabatina na CCJ do Senado. (Foto: Edilson Rodrigues/Agência Senado)

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“O homem que se conforma a tudo o que o sistema exige já não precisa ser mandado – ele se tornou o próprio sistema.” (Václav Havel, O Poder dos Sem Poder)

Uma cena banal. E, por isso mesmo, perturbadora. Durante a sabatina no Senado, o senador Flávio Bolsonaro interpelava o procurador-geral da República, Paulo Gonet, sobre os abusos do Ministério Público e a inércia da PGR diante da escalada autoritária do Supremo Tribunal Federal – escalada que teve seu pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, como principal vítima. O senador falava com veemência, com indignação palpável, como quem ainda acredita que a palavra possa mover algo. Mas Gonet o ouvia – ou fingia ouvir – com a placidez vegetal de um funcionário de cartório. Nenhum traço de emoção, nenhuma expressão de desconforto, nem mesmo aquele sorriso amarelo que os covardes esboçam quando percebem o ridículo de sua própria covardia. Nada. Apenas o rosto liso, impenetrável, neutro – como se uma máquina tivesse sido instalada no lugar de um homem. O rosto da banalidade do mal.

Sentado diante dos senadores, Gonet parecia mesmo a própria encarnação do que Hannah Arendt viu em Adolf Eichmann – não um monstro, mas uma criatura medíocre. No lugar do esperado sádico, o que havia era o obediente. Pior que um homem mau, o homem nenhum. O tipo que cumpre ordens com o zelo frio dos invertebrados, convencido de que a consciência moral é um luxo dispensável no serviço público. “Não era estupidez demoníaca, mas ausência de imaginação”, escreveu Arendt sobre o réu de Jerusalém. A frase descreve com precisão a imagem de Gonet diante do senador cujo pai ele fustiga com sua infâmia cartorial.

Sentado diante dos senadores, Gonet parecia mesmo a própria encarnação do que Hannah Arendt viu em Adolf Eichmann – não um monstro, mas uma criatura medíocre

Sim, o burocrata totalitário – e o Brasil está cada vez mais cheio deles – não se apresenta como um vilão clássico, de olhar flamejante e intenções grandiosas. Apresenta-se como o que Gonet foi ali: um homem sem expressão. A neutralidade é sua máscara, e a máscara é sua moral. O burocrata é o sacerdote do Nada. Seu rosto é um espelho vazio, onde se reflete apenas a estrutura social patológica que o criou.

Franz Kafka foi um dos primeiros escritores a discernir a estética desse fenômeno. Em O Processo, Josef K. se vê esmagado por uma máquina impessoal, onde cada funcionário cumpre sua função sem jamais compreender o todo. “O tribunal não quer nada de você”, diz-lhe um personagem. “Ele apenas o processa.” Essa lógica – a do processamento sem finalidade – é o retrato do Estado moderno em seu aspecto mais doentio. Cada engrenagem move a outra, sem que nenhuma saiba por quê. E, nesse movimento sem sujeito, nasce o rosto sem feições do burocrata: nem malicioso, nem piedoso, apenas vazio. Gonet e sua carranca morfética o ilustram à perfeição.

Também George Orwell se intrigou com essa fisionomia. Em 1984, os rostos dos funcionários do Partido não exprimem dúvida nem emoção. O controle é absoluto – inclusive da expressão facial. A neutralidade é uma forma de lealdade. O burocrata totalitário deve parecer “normal”, o mais normal possível. Sua fisionomia anódina é parte do uniforme. Seu ódio e seu amor são inteiramente dispensáveis; indispensável é apenas sua obediência canina. Ademais de kafkiana, a figura de Paulo Gonet é orwelliana. O que o torna perigoso é precisamente essa recusa de se posicionar moralmente diante do mal. Todo terror institucional de Estado carece de homens assim – disciplinados, silenciosos, bem-educados e incapazes de pensar.

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Um modernista ou um cínico (o que vem a dar praticamente no mesmo) talvez enxergasse algo de quase artístico nessa anulação maquinal da fisionomia humana. O burocrata se lhe afiguraria como o triunfo da forma sobre o conteúdo – ou, mais precisamente, da forma vazia sobre o conteúdo ausente. Sua aparência de compostura e serenidade seria vista como a construção estética do poder moderno. O rosto neutro é a fachada do terror institucional.

Mas nem tudo é estética no mundo. O poder estatal totalitário, caso seja uma forma de arte, é uma arte destrutiva e imoral, cujo produto são vidas humanas esmagadas – como se fossem uma guimba de cigarro na calçada. Uma guimba esmagada pelo sapato lustroso e indiferente de uma multidão de Gonets...

Em O Poder dos Sem Poder, Václav Havel mostrou como o totalitarismo depende dessa “automatização da obediência”. O funcionário público, o juiz, o promotor – todos repetem os mesmos jargões burocráticos, assinam os papéis certos e assim mantêm o sistema em funcionamento. A tirania moderna não precisa de carrascos violentos; basta-lhe uma massa de técnicos, cada qual convencido de que não faz nada de mal. É o triunfo da irresponsabilidade moral organizada. O sistema é um organismo que age sem autor, e cuja única finalidade é a própria sobrevivência. E, sendo agora sistêmico, o mal praticado não suscita a mais mínima sensação de culpa no espírito do burocrata.

Ao contrário de Alexandre de Moraes, Paulo Gonet não parece odiar. Ele apenas não sente nada. E é essa ausência de sentimento que o torna útil ao poder tirânico

Com sua postura, Paulo Gonet representa exatamente isso: a abdicação moral travestida de respeito institucional. Quando questionado sobre os abusos do Supremo, ele não defende abertamente o arbítrio – mas tampouco o condena. Recorrendo à langue de bois da burocracia estatal, é capaz de proclamar a abolição do princípio da impessoalidade do juiz com o tom de quem lê uma bula de remédio, sem qualquer sinal de emoção na voz. Fala abundantemente em “harmonia entre os poderes”, “respeito às instituições” e “Estado Democrático de Direito”. São as fórmulas sacramentais da omissão. A burocracia totalitária é uma religião de eufemismos.

Ao contrário do extremista político Alexandre de Moraes – campeão dos despachos de ódio em caixa alta –, Gonet não parece odiar. Ele apenas não sente nada. E é essa ausência de sentimento que o torna útil ao poder tirânico. Enquanto o totalitarismo do primeiro guarda traços de sovietismo, o de Gonet é mais tipicamente brasileiro, pois vem revestido de boas maneiras. Com seu timbre tépido e semblante aparvalhado, o novo-velho procurador-geral encarna o tipo de tirano cordial, que pronuncia “Vossa Excelência” pausadamente enquanto assina o despacho que destrói uma vida.

Nesse sentido, Paulo Gonet representa bem a cultura política nacional do “centro” – ou, melhor dizendo, do centrão. Sua aparência de neutralidade, no Brasil, tem sotaque de conciliação. E é precisamente por isso que ela é mais perigosa. O burocrata brasileiro não se assume como parte do poder arbitrário – acredita estar “moderando os excessos”, “preservando a institucionalidade”, “evitando crises”. A moderação virou o nome de guerra da pusilanimidade.

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Em condições normais, o rosto é, ou deveria ser, o palco principal das relações humanas. É no rosto que reconhecemos o outro como pessoa, e não como função. O rosto de Cristo, o rosto do mártir, o rosto do inocente – são lembranças de que o humano se manifesta na expressão fisionômica. O totalitarismo, ao contrário, é a negação da fisionomia. Ele produz homens sem face, pois precisa destruir o reconhecimento.

Diante da indignação de Flávio Bolsonaro, a pálida face de Gonet é a materialização de uma estrutura que já não reconhece o cidadão, o eleitor, e muito menos o ser humano. O poder, aí, tornou-se um circuito fechado, autorreferente, imune à interpelação moral. Nesse sentido, sua fisionomia é um espelho do Estado brasileiro: uma máquina que não sente, não escuta, e muito menos responde a comandos genuinamente humanos. Trata-se de um rosto que parece ter desaprendido a função da expressão humana, que é a de revelar o interior. Daí haver, para as pessoas comuns, algo de tão repulsivo nessa neutralidade fisionômica – não por exprimir maldade, mas ausência de humanidade. O rosto neutro de Paulo Gonet é a máscara mortuária de uma República sem alma.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos