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A história do cristianismo oriental é longa e complexa, profundamente enraizada nas tradições que se formaram nos primeiros séculos após os apóstolos. Herdeira direta da antiga Igreja do Império Bizantino, a Igreja Ortodoxa preservou uma continuidade notável de doutrina, liturgia e vida espiritual. Essa estabilidade se manteve mesmo diante de pressões políticas, disputas teológicas e transformações culturais que atravessaram impérios e fronteiras.
A queda de Constantinopla, em 1453, marcou o início de uma nova fase. A ajuda militar ocidental existiu, mas foi limitada, pois estava condicionada à aceitação da união com Roma – proposta rejeitada pela maior parte do clero e do povo bizantino até que já era tarde demais. Sob o domínio otomano, a ortodoxia não apenas lutou para sobreviver, mas também teve de repensar sua posição diante do Ocidente latino e, mais tarde, diante das ideias nascidas da Reforma Protestante. Esse processo de redefinição moldou profundamente a consciência teológica e eclesial do Oriente cristão nos séculos seguintes.
É nesse contexto de tensão e transição que surge uma das figuras mais notáveis e corajosas do cristianismo oriental moderno: Cirilo Loukaris. Sua vida e obra são testemunhos da fé que busca ser fiel à verdade bíblica, mesmo quando essa fidelidade exige enfrentar poderes políticos, tradições arraigadas e a incompreensão de seus próprios irmãos na fé.
Uma abertura à verdade
Cirilo Loukaris, nascido Constantino Loukaris em 13 de novembro de 1572, em Heraklion, na ilha de Creta, então sob a República de Veneza, cresceu em um contexto em que o mundo ortodoxo vivia sob o peso do Império Otomano. Desde jovem, destacou-se por sua inteligência e piedade. Enviado a Veneza, onde estudou com o bispo Maximos Margunios, e depois à Universidade de Pádua, entrou em contato com o humanismo renascentista e com os ensinos teológicos reformados então em expansão. Nesses ambientes, aprendeu latim e italiano e consolidou sua formação teológica.
Embora a data exata seja desconhecida, Loukaris foi ordenado hieromonge (monge sacerdote) na Itália. Em 1596, foi enviado à Comunidade Polaco-Lituana em Brest, por seu tio, Meletius Pegas, patriarca de Alexandria, para liderar a resistência ortodoxa à União de Brest, que propunha a união da Igreja de Kiev com Roma. Ali se uniu aos que se recusaram a submeter-se à autoridade da União e, durante seis anos, serviu como professor da academia ortodoxa em Vilna, atuando diretamente na defesa da fé oriental sob intensa pressão política e religiosa.
Cirilo Loukaris resistiu tanto à dominação católica quanto ao controle político otomano, defendendo uma Igreja livre, centrada na Palavra de Deus
O contato inicial de Loukaris com o pensamento reformado se deu justamente nesse contexto de conflito confessional na Polônia, Lituânia e Ucrânia. Em meio à fragilidade das comunidades ortodoxas e ao avanço católico romano, Loukaris visitou centros de influência reformada em Lublin e Vilna e participou de debates onde textos reformados circulavam ativamente. Seu interesse pela Reforma Protestante, portanto, não nasceu de especulação acadêmica, mas da busca pastoral de fortalecer a Ortodoxia. Ele percebeu que certas ênfases reformadas, como a centralidade das Escrituras, a justificação pela fé e o lugar da pregação, poderiam servir como renovação da tradição oriental. Assim, seu contato com a teologia reformada foi gradual, prática e pastoral, amadurecido na luta pela preservação da igreja, e não mera adesão externa ou importação teológica.
Patriarca de Alexandria e Constantinopla
Em 1601, ao ser eleito patriarca de Alexandria, Constantino recebeu o nome episcopal de Cirilo, título pelo qual se tornaria conhecido na história. Ele iniciou seu patriarcado em 1602, dedicando-se à educação do clero e à revitalização espiritual da Igreja. Sua fama de erudição e piedade cresceu rapidamente. Em seus sermões de 1610, já se percebia, pela primeira vez, citações das Institutas da Religião Cristã, de João Calvino. Em 1618, ele escreveu uma carta a Marco Antonio de Dominis, anteriormente arcebispo católico romano, dizendo:
“Houve um tempo em que estávamos iludidos, antes de entendermos a Palavra de Deus em sua pureza; e, embora não nos comunicássemos com o Pontífice Romano... abominávamos a doutrina das igrejas reformadas como contrária à fé, sem saber ao certo o que abominávamos. Mas quando aprouve ao Deus misericordioso iluminar-nos e fazer-nos perceber nosso antigo erro, começamos a considerar qual deveria ser nossa posição futura. E assim como é papel de um bom cidadão, em caso de dissensão, defender a causa mais justa, considero ainda mais ser dever de um bom cristão não dissimular seus sentimentos em questões que dizem respeito à salvação, mas abraçar sem reservas aquele lado que mais concorda com a Palavra de Deus. O que fiz então? Tendo obtido, pela bondade de amigos, alguns escritos de teólogos evangélicos – livros que não apenas eram desconhecidos no Oriente, mas que, devido à influência das censuras de Roma, nem sequer eram ouvidos –, invoquei então com fervor a assistência do Espírito Santo e, por três anos, comparei as doutrinas das Igrejas Grega e Latina com a dos reformadores... Abandonando os Pais, tomei por meu único guia as Escrituras e a analogia da fé. Por fim, tendo sido convencido, pela graça de Deus, de que a causa dos reformadores era mais correta e mais conforme à doutrina de Cristo, eu a abracei.”
Finalmente, em 1620, Cirilo foi chamado para ocupar o trono patriarcal de Constantinopla, o posto mais prestigioso da ortodoxia oriental. Acredita-se que essa eleição tenha ocorrido na embaixada holandesa. O único problema era que a Igreja Ortodoxa não era dona de si mesma. Desde a queda do Império Bizantino, em 1453, ela vinha sendo governada pela jurisprudência islâmica dos turcos otomanos. Assim, na capital do Império Otomano a vida do patriarca estava longe de ser tranquila. Constantinopla era um caldeirão de tensões políticas e religiosas: o governo turco muçulmano, em constante vigilância sobre os cristãos; diplomatas católicos e padres jesuítas tentando atrair a Igreja Ortodoxa para a órbita de Roma; e missionários protestantes que buscavam contato com os cristãos orientais.
Loukaris, em correspondência com o teólogo remonstrante holandês Johannes Uytenbogaert, citou as principais crises que atingiam a Igreja Ortodoxa. Em primeiro lugar, ele apontou a ignorância e a falta de escolas. Depois, mencionou a tirania otomana e perseguição generalizadas. Por fim, ele faz referência ao “ajuntamento de crianças”: um sistema segundo o qual, a cada cinco anos, soldados otomanos percorriam as aldeias gregas para levar embora meninos com mais de 7 anos que fossem considerados belos ou inteligentes, para então serem recrutados e educados como muçulmanos.
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Nesse ambiente instável, Cirilo destacou-se por sua independência e coragem. Ele resistiu tanto à dominação católica quanto ao controle político otomano, defendendo uma Igreja livre, centrada na Palavra de Deus. Sua erudição e sua habilidade diplomática lhe renderam respeito até entre seus adversários, mas também o colocaram no centro de intrigas e perseguições.
Loukaris também fundou um seminário teológico no Monte Atos, a escola Athoniada. E em 1627 ele autorizou o estabelecimento de uma tipografia em língua grega em Constantinopla, a primeira do gênero, sob a direção de Nicodemus Metaxas. A tipografia foi destruída em 1628 pelos otomanos, possivelmente sob influência do embaixador francês favorável aos jesuítas. Com a imprensa de Constantinopla arruinada, Loukaris recebeu apoio de seu amigo reformado Antoine Léger, capelão da embaixada holandesa, que garantiu que seus escritos fossem publicados pela tipografia de Genebra. E patrocinou o monge Máximo de Galípoli na preparação da primeira tradução do Novo Testamento para o grego moderno, a fim de que, como afirmou Cirilo, “os fiéis pudessem ler a Bíblia sozinhos, por si mesmos”. Essa tradução foi publicada em Genebra, em 1638, com o apoio do governo holandês.
Cirilo tinha boa relação com a Igreja da Inglaterra e manteve correspondência com o Arcebispo da Cantuária, George Abbot. Foi em sua época que Metrophanes Kritopoulos, que mais tarde se tornaria patriarca de Alexandria, foi enviado à Inglaterra, para estudar na Universidade de Oxford. Tanto Cirilo quanto Kritopoulos amavam livros e manuscritos, e muitos dos volumes das coleções desses dois patriarcas hoje adornam a Biblioteca Patriarcal.
A confissão de fé de 1629
Em 1629, Loukaris publicou a Confissão Oriental da Fé (Confessio fidei Orientalis), escrita originalmente em latim. Essa obra é um marco na história da teologia oriental e um dos textos mais ousados do cristianismo do século 17. Composta de 18 capítulos, ela buscava apresentar a fé da Igreja Ortodoxa de forma que dialogasse com as doutrinas redescobertas pela Reforma Protestante. Loukaris manteve os dogmas clássicos da ortodoxia – especialmente quanto à Trindade e à encarnação de Cristo –, mas introduziu conceitos que o aproximavam da tradição reformada:
A Escritura é a infalível Palavra de Deus. “Cremos que a autoridade da Sagrada Escritura está acima da autoridade da Igreja” (Capítulo 2).
A predestinação ocorre “antes do princípio do mundo” e não é baseada na presciência de Deus, “sem consideração de [...] obras, e [...] nenhuma outra causa influente”. Os eleitos são escolhidos apenas pela “própria vontade e misericórdia de Deus” (Capítulo 3).
A Igreja é ensinada pelo Espírito Santo, mas é “certo que a Igreja pode errar, escolhendo o erro em lugar da verdade; porém somente a luz e a doutrina do Espírito Santo nos livra disso” (Capítulo 12).
A justificação é pela fé e não pelas obras. “Porém, ao dizer fé, entendemos seu objeto correlato, que é a justiça de Cristo, a qual a fé, como que pela mão, apropria-se para nossa salvação”. Essa afirmação não negava a necessidade de boas obras, mas elas não merecem a salvação. “Somente a justiça de Cristo aplicada ao penitente justifica e salva o fiel” (Capítulo 13).
O livre-arbítrio “está morto no homem não regenerado”, sendo livre apenas para pecar. Ou seja, “é necessário que a graça preceda” a fé, se não os seres humanos não conseguem fazer nenhum bem (Capítulo 14).
Jesus Cristo está presente na eucaristia, para o cristão. “Cremos [n]a verdadeira presença de Cristo na Ceia, porém [n]aquela presença que a fé oferece [...]. A fé recebe o corpo e sangue de Cristo espiritualmente [...]; se cremos, participamos, se não cremos, carecemos de todo fruto. Assim, ao sermos participantes dignos do corpo e sangue de Cristo, reconhecemos nossa reconciliação e união com ele, com a esperança de sermos coerdeiros de seu Reino vindouro” (Capítulo 17).
A trajetória de Cirilo Loukaris revela um cristão que buscou preservar a fidelidade ao evangelho em meio a pressões políticas e disputas confessionais
Mais do que uma simples repetição das Institutas de João Calvino ou imitação da Confissão de Fé Belga, de 1561, a confissão de Loukaris foi uma tentativa de reformar a Igreja Ortodoxa de dentro, purificando-a e reafirmando suas raízes apostólicas. Ele acreditava que o Oriente não deveria fechar-se às verdades que a Reforma redescobrira, mas examiná-las à luz da Escritura.
A confissão apareceu em 1629 em duas edições latinas, quatro francesas, uma alemã e uma inglesa. Só em 1633 foi traduzida para o grego. Por isso, é provável que a publicação original tenha sido planejada para angariar apoio político estrangeiro – e não para uma Reforma da Igreja Ortodoxa. Ainda assim, as ideias de Loukaris provocaram reações intensas.
Oposição, perseguição e martírio
Os padres jesuítas, muito ativos em Constantinopla, viram nele uma ameaça direta ao seu projeto de união da Igreja Ortodoxa com Roma. Usando sua influência nas cortes europeias e entre oficiais otomanos, iniciaram uma campanha sistemática de difamação contra o patriarca. Loukaris foi acusado de heresia e até de conspirar com potências estrangeiras inimigas do Império Otomano.
Essas acusações levaram à sua deposição e posterior reinstalação por quatro vezes, resultado das pressões de opositores ortodoxos e do embaixador católico francês, Count de Marcheville, ao mesmo tempo em que recebia o apoio dos embaixadores protestantes Cornelius van Haga, da Holanda, e Edward Barton e Sir Paul Pindar, da Inglaterra, na capital otomana. Cada retorno ao patriarcado era uma vitória temporária sobre os que queriam sua destruição, mas também um prenúncio de novos ataques.
Mesmo sob constante vigilância e ameaça, Loukaris continuou seu trabalho de ensino e correspondência. Manteve contato com teólogos reformados na Holanda e na Inglaterra, enviando jovens clérigos ortodoxos para estudar em universidades protestantes. Via nisso uma forma de renovar o clero oriental e abrir caminhos de diálogo entre as duas grandes tradições cristãs.
A perseguição, porém, atingiu seu clímax em 1638. Convencidos pelos jesuítas de que Loukaris conspirava contra o sultão Murad IV, as autoridades otomanas decidiram eliminá-lo. O patriarca foi preso, levado a bordo de uma barca no Bósforo e estrangulado por janízaros, tendo seu corpo lançado às águas, em 27 de junho. Seu corpo foi recuperado e enterrado longe da capital por seus amigos, sendo trazido de volta para Constantinopla somente muitos anos depois.
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A reação ortodoxa e a reabilitação póstuma
Após sua execução, os adversários de Loukaris agiram rapidamente para apagar seu legado. Em 1638, o Sínodo de Constantinopla, realizado sob forte pressão política francesa e jesuítica, condenou a Confissão atribuída a Loukaris. Em 1642, o Sínodo de Jassy reafirmou a ortodoxia tradicional ao adotar a Confissão de Mogila contra influências reformadas. E, em 1672, sob o patriarca Dosítheos II de Jerusalém, foi redigida a Confissão de Dosítheos, aprovada pelo Sínodo de Jerusalém. Esse documento, composto de 18 decretos, reafirmava as posições tradicionais da Ortodoxia oriental.
Mesmo tendo sido anatematizado no passado, Cirilo Loukaris é atualmente reconhecido como santo na Igreja Ortodoxa, canonizado pelo Patriarcado de Alexandria em 2009 e pelo Patriarcado Ecumênico de Constantinopla em 2022, com memória litúrgica em 27 de junho. Essa canonização resultou de uma reavaliação que destacou seu zelo pastoral, sua defesa da Ortodoxia e seu martírio pelas mãos das autoridades otomanas.
A Confissão Oriental da Fé não indica que Loukaris tenha simplesmente adotado a fé reformada, mas revela seu esforço de dialogar com a Reforma dentro da própria tradição ortodoxa, apropriando-se de elementos que considerava capazes de fortalecer a igreja diante da pressão católica e do contexto político islamita adverso. Sua teologia, atualmente, é entendida como pastoral e renovadora, e não como ruptura com a Ortodoxia. Por isso, é rememorado como um hieromártir (sacerdote mártir), que defendeu a centralidade da Escritura e a integridade da fé ortodoxa em meio a intensas pressões teológicas e políticas no mundo muçulmano do século 17.
O reformador do Oriente
A trajetória de Cirilo Loukaris revela um cristão que buscou preservar a fidelidade ao evangelho em meio a pressões políticas e disputas confessionais. Sob domínio otomano, participou ativamente do debate teológico europeu, dialogando com líderes anglicanos e reformados. Mais duradoura que alianças circunstanciais foi sua convicção de que a fé e a comunhão cristã, acima das controvérsias, deveriam orientar a vida da Igreja. Sua própria experiência mostra que a influência evangélica se desenvolve em redes de cooperação multicultural, envolvendo pastores, comerciantes, embaixadores e educadores.
Ainda assim, seu esforço de reformar a Ortodoxia a partir da centralidade das Escrituras não se consolidou; após sua morte, a Igreja reafirmou a teologia estabelecida e bloqueou qualquer avanço de sua proposta. No entanto, sua vida permanece um testemunho de coragem pastoral: dedicou-se ao ensino da doutrina cristã, à defesa da fé diante do Islã, à formação do povo grego e à afirmação de que Cristo e as Escrituras são o verdadeiro centro da Igreja. Seu legado nos convida a confiar não no poder humano, mas no evangelho como força de Deus para a salvação.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos
