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Leão XIV saúda peregrinos dos Estados Unidos durante audiência geral na Praça de São Pedro, em 1.º de outubro. (Foto: Fabio Frustaci/EFE/EPA)

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No sábado, dia 8, o papa Leão XIV completou seis meses de pontificado. Ainda há quem o considere um “enigma”, dando a entender que ele ainda não mostrou todas as cartas que tem na mão, que estaria esperando o momento certo para dar com o pé na porta dizendo “aqui mando eu”. Essa me parecia uma análise válida lá nos primeiros dois, três meses de pontificado, mas agora já não me parece ser assim. Já tivemos elementos suficientes (à exceção de uma viagem internacional, mas isso está para mudar ainda neste mês, com a visita à Turquia e ao Líbano) para pintar um retrato mais nítido de como deve ser esse pontificado.

Já pudemos ver com clareza, tanto por sua presença pública quanto pelo que ouvimos de quem esteve com ele, que Leão XIV é um papa discreto, pouco expansivo, que prefere refletir e ouvir muito antes de tomar decisões importantes, que prefere o discurso preparado ao improviso, que é bastante cristocêntrico em suas intervenções escritas e faladas, e que vai aliar firmeza em temas morais importantes para a Igreja, como a defesa da vida e da família, com uma preocupação forte em temas sociais – do contrário, ele não teria escolhido homenagear Leão XIII, o pioneiro da Doutrina Social da Igreja, na escolha do nome pontifício. E é alguém que foi eleito com a missão de restaurar uma unidade interna da Igreja que foi perdida em tempos de polarização extrema, de modo que a Cúria Romana não deve se transformar em panelinha ideológica.

“Papa comunista” e “perigoso”

Mas um grupo em particular não está nada feliz com Leão XIV, ao menos segundo alguns relatos na imprensa: o dos católicos trumpistas. Algumas declarações específicas do papa norte-americano sobre política migratória, trechos da exortação apostólica Dilexi te e a participação do pontífice em um evento de cunho ambiental foram suficientes para que, segundo a revista britânica The Economist, os “católicos MAGA” (de Make America Great Again, o slogan trumpista) ressuscitassem o “papa comunista” e o “papa woke” da época de Francisco – o que já era uma tolice rematada no pontificado anterior, e o é ainda mais no pontificado atual.

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Já consigo até ouvir essas pessoas dizendo “esse papa não me representa”, e o motivo é evidente: Leão XIV não endossa as políticas migratórias de Trump, parece adotar a ideia da “ética de vida consistente” em temas como pena de morte, deu continuidade à ênfase de Francisco na questão ambiental, e fez críticas aos excessos de um livre mercado desregulado em sua encíclica sobre os pobres. Como os “católicos MAGA” estabeleceram o ideário trumpista como sua régua moral, quem quer que se desvie dele – incluindo o papa – vira “comunista”. E aí vemos gente como Benjamin Harnwell, correspondente em Roma do podcast War Room, de Steve Bannon, dizendo à Economist que Leão é “mais inteligente e sutil do que Francisco e, portanto, mais perigoso” – sim, você leu certo, ele disse perigoso –, e que a permissão papal para a celebração de uma missa tridentina na Basílica de São Pedro, no fim de outubro, não passava de uma tentativa de “comprar” os católicos conservadores, como se o papa estivesse lançando migalhas para contentá-los enquanto avança com sua verdadeira agenda.

Em resumo, esses católicos estão fazendo justamente o que o liturgista tradicionalista Alcuin Reid, prior de um mosteiro beneditino na França, criticou em um artigo recente para o Catholic Herald:

“Muitos continuam a examinar cuidadosamente todas as palavras e atos do Santo Padre na esperança de encontrar uma chave para este pontificado, quase com o desejo de usar essa chave para abrir ou fechar as portas de sua boa vontade de acordo com uma agenda pré-determinada. Essa ‘politização’ de como tratamos o papado é infeliz, não apenas porque contraria o instinto profundamente católico de darmos ao papa nossa confiança e lealdade, mas também porque nem toda declaração da pessoa que exerce o pontificado será sempre ponderada, e nem tudo o que ele fizer será necessariamente sábio. Qualquer um que tenha vivido os pontificados das últimas décadas terá aspectos a lamentar em todos eles.” (destaque meu)

Leão XIV vem tratando de temas sociais em consonância com a Doutrina Social da Igreja, não com a plataforma de um político ou de um partido

A Doutrina Social da Igreja não é MAGA

A esses católicos, lamento muito informar que a Doutrina Social da Igreja não cabe em caixinhas ideológicas. Ela condena o socialismo e o comunismo, mas também condena um capitalismo que não esteja “ao serviço da liberdade humana integral e a considere como uma particular dimensão desta liberdade, cujo centro seja ético e religioso” (vejam o parágrafo 335 do Compêndio). A DSI tem a subsidiariedade como princípio, condenando o intervencionismo (que Leão XIV nem sequer defende em Dilexi te), mas não é o único: em pé de igualdade estão a solidariedade, o bem comum, a dignidade humana, e a destinação universal dos bens.

Então, onde quer que estes princípios estejam sendo violados, a Igreja haverá de se pronunciar. Você não verá o papa negando o direito de um país a escolher sua política migratória, mas, se há famílias de imigrantes ilegais sendo separadas após a detenção, se há imigrantes ilegais sem acesso à assistência religiosa, se há imigrantes ilegais sendo deportados sem o devido processo legal, se há imigrantes ilegais sendo mantidos em condições degradantes, sim, espere a crítica das autoridades da Igreja, porque ela estará em linha com a sua Doutrina Social.

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E, ao católico norte-americano trumpista que chama o papa de “comunista” porque fez uma equiparação entre aborto, pena de morte e tratamento desumano de imigrantes (porque foi disso que Leão XIV falou – e não, ele não defendeu a entrega do prêmio ao senador abortista de Illinois), eu perguntaria onde é que ele estava quando Trump forçou o Partido Republicano, em sua convenção nacional de 2024, a mudar a plataforma oficial da legenda em relação ao aborto. Os republicanos sempre tinham sido oficialmente favoráveis à proibição legal do aborto, mas o partido abandonou essa posição, substituindo-a pela defesa da autonomia dos estados em decidir sobre o tema (incluindo decidir pela legalização total) – e essa mudança foi, sim, imposta por Trump, gostem ou não os “católicos MAGA”. Quem se calou diante disso porque o que Trump diz não se contesta já fez sua escolha, e tem ainda menos autoridade moral para vir rasgar as vestes diante de qualquer coisa que o papa diga.

A malandragem “progressista”

Dito isso tudo, é preciso fazer uma observação importante. A CNN, em sua reportagem sobre os seis meses de pontificado de Leão XIV, entrevistou dois pesquisadores da Universidade Georgetown, um dos quais afirmou que “suas [do papa] grandes prioridades são a pobreza, a imigração e as mudanças climáticas, e ele é um grande defensor do projeto de sinodalidade iniciado por Francisco – o esforço por tornar a Igreja Católica mais inclusiva e participativa”. Em outro trecho, é o próprio repórter da CNN que afirma, de próprio punho: “Enquanto o papa tem um estilo mais reservado e formal que seu antecessor, ele está dando continuidade às prioridades de Francisco”.

Acontece que Georgetown é um dos epicentros do “catolicismo progressista” norte-americano, mas a reportagem da CNN ignora totalmente esse aspecto. Aqui temos uma malandragem da imprensa enviesada, denunciada mais de 20 anos atrás por Bernard Goldberg no seu essencial livro Bias: fontes de direita ou conservadoras sempre são descritas com um adjetivo que as caracteriza ideologicamente, mas isso acontece muito menos com fontes de esquerda ou ditas “progressistas”, que passam assim como analistas imparciais, mesmo estando muito longe disso. E o que os “progressistas” (sempre entre aspas, porque o que eles defendem não tem nada de progresso) católicos mais querem é pintar Leão XIV como “um dos nossos”, um Francisco II.

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Mas nem de longe os temas sociais parecem ter assumido a dianteira no pontificado de Leão XIV, acima dos temas doutrinais ou morais, e tampouco está claro o que o papa entende como “sinodalidade”, um termo tão confuso que só conseguiu ser definido até agora em termos genéricos, e mais em relação ao que ele não é. Além disso, é importante lembrar que algumas das falas do papa foram respostas a perguntas de jornalistas, e alguns eventos recentes que tiveram sua participação, como o dos movimentos sociais e a comemoração aos dez anos da Laudato Si’ (com o episódio do bloco de gelo) já estavam marcados desde antes da morte de Francisco. Então, não é como se o papa tivesse tomado a iniciativa, out of the blue, de tudo isso que vem acontecendo. Aliás, é notório que Leão XIV tem mostrado disposição de não jogar no lixo compromissos assumidos ou trabalhos deixados inacabados pelo pontificado anterior; tem cumprido a exaustiva programação do Jubileu, desenhada sob Francisco, e está publicando ou deixando publicar documentos iniciados antes de ele se tornar papa.

O papa serve a Cristo, não a um político, partido ou ideologia

Leão XIV não é Francisco II, nem Bento XVII ou Pio XIII. Ele vem tratando de temas sociais em consonância com a Doutrina Social da Igreja, não com a plataforma de um político ou de um partido, e vem se esforçando para não alienar nenhum dos “grupos” que vêm se cristalizando dentro da Igreja; quem trata os atos de aproximação com os tradicionalistas como “isca” para enganá-los está fazendo juízo temerário puro e simples, e quem alimenta desconfiança e ressentimento contra o papa dessa forma, ainda mais quando a motivação é idolatria política, deveria parar imediatamente e fazer um bom exame de consciência, especialmente na parte do primeiro e do quarto mandamento.