Novo Código Civil - Pacheco
Juristas apontam confusão e riscos no projeto do Código Civil em audiência pública com Pacheco. À direita de Pacheco, os senadores Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) e Tereza Cristina (PP-MS). (Foto: Geraldo Magela/Agência Senado)

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A proposta do novo Código Civil, atualmente em análise no Senado, foi alvo de fortes críticas durante a reunião da comissão que analisa o tema nesta quinta-feira (13). Especialistas e representantes do setor produtivo afirmaram que o texto, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), gera insegurança jurídica, confunde conceitos ainda pouco consolidados no direito brasileiro e pode aumentar o número de disputas judiciais.

O professor da Faculdade de Direito da USP, Cristiano de Souza Zanetti, defendeu o arquivamento do Projeto de Lei 4/2025. “O projeto do novo Código Civil deve ser arquivado. No âmbito do direito dos contratos, em particular, a proposta propõe um regime jurídico incompreensível, arbitrário e, portanto, injusto”, disse Zanetti.

Ele apontou que, de acordo com o PL, os contratos só serão respeitados se observarem noções de paridade e simetria. “Isso significa que, se não houver paridade e simetria, a intervenção judicial será constante e a revisão do pactuado será a regra”, disse o professor da USP. 

“Ao pretender reger os direitos do contratos, com base em noções desprovidas de sentido, como paridade simetria e função social, o projeto do novo Código Civil põe em risco a autonomia privada, fomenta a judicialização dos negócios e impede que os contratantes saibam como se comportar para seguir a lei”, criticou. 

A advogada Judith Martins-Costa, representante da Confederação Nacional da Indústria (CNI), afirmou que o texto, da forma como está redigido, poderá afetar “o país, a vida do cidadão e a saúde das empresas”.

“Pela confusão entre os distintos papéis da lei, da doutrina e da jurisprudência, corremos o risco de incorporar em um Código Civil — que deveria ser límpido, cristalino e baseado na ciência do direito — categorias jurídicas ainda não amadurecidas ou sem respaldo na cultura jurídica brasileira”, afirmou Martins-Costa. 

Ela destacou que o Projeto de Lei 4/2025 “parece não levar em conta o pano de fundo do sistema jurídico contratual brasileiro”. A representante da CNI ressaltou que as empresas “só podem assumir riscos quando há alguma estabilidade e previsibilidade quanto aos rumos do futuro”.

A relatora-geral da proposta, Rosa Maria de Andrade Nery, rebateu dizendo que a função social está em todos os institutos jurídicos, portanto, o contrato tem uma função social. “Paridade e simetria são palavras que estão na língua portuguesa há séculos. Simetria se refere às coisas e paridade às pessoas. Portanto, não vejo essa surpresa que foi trazida com tanta veemência”, disparou Nery.  

O professor José Roberto de Castro Neves, da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Rio), também criticou o trecho do projeto que prevê que “a cláusula contratual que violar a função social do contrato é nula de pleno direito”. Segundo ele, caso o dispositivo seja aprovado, o conceito amplo de função social poderá gerar insegurança jurídica, já que “quem passa a reger a função social é cada julgador”.

“Essa mudança retira um dos principais objetivos da lei, que é a tranquilidade social, e abre espaço para uma judicialização indesejada”, afirmou Neves. Ele destacou ainda que não encontrou em nenhuma legislação dispositivo que transforme um princípio jurídico — como o da função social — em fator de nulidade.

Contrato empresarial x contrato de consumo

Martins-Costa lembrou que a norma em vigor sobre contratos se restringe às relações civis e empresariais, não abrangendo relações de consumo, de trabalho ou de direito administrativo. Já as relações assimétricas, como locação e franquia, são tratadas em leis específicas.

“Não obstante, o PL acolhe uma consumerização das relações contratuais, totalmente impertinente, no meu modo de ver”, afirmou. Para a advogada, o PL faz com que contratos por adesão sejam interpretados como contratos de consumo, seguindo regra do Código de Defesa do Consumidor (CDC).

Ela também observou que o projeto afasta o critério previsto no artigo 423 do atual Código Civil, segundo o qual a interpretação favorável ao aderente só ocorre quando houver cláusulas ambíguas ou contraditórias. Outro ponto questionado é a previsão de que a adesão presumida seja considerada em caso de vulnerabilidade ou hipossuficiência de uma das partes.

“Por que inundar o Código Civil como construímos, como se nós não tivéssemos há 30 anos o CDC? Não bastasse a parte geral ter esfacelado o conceito de patrimônio no artigo 91 e ampliado enormemente a possibilidade de nulificação dos contratos, com base em ideias vagas”, disse. 

O relator-geral Flávio Tartuce negou que o projeto trate de contratos de consumo e afirmou que o conceito “está mal colocado” no Código de Defesa do Consumidor (CDC). 

“Guerra de etiquetas” nos contratos

Martins-Costa afirmou que o texto do projeto introduz uma “guerra de etiquetas” e uma classificação confusa entre contratos paritários, simétricos e assimétricos, criando dúvidas sobre a aplicação prática dessas categorias. “As palavras no direito têm consequências. Paridade, simetria e assimetria definem a disciplina dos tipos contratuais”, disse a advogada, lembrando que “por vezes a mudança de uma vírgula pode gerar anos de discussão nos tribunais”.

Ela exemplificou: nos contratos paritários, as partes podem convencionar sobre fontes, meios, procedimento e valoração da prova, mas essa possibilidade não é mencionada nos contratos simétricos. “Nos contratos paritários e simétricos as partes poderão ou não estabelecer a prova e nos contratos paritários ou simétricos?”, questionou. 

A doutora em Direito Civil Micaela Fernandes reforçou as críticas, afirmando que as ambiguidades do texto podem aumentar a judicialização. “O Código Civil deveria ser a regra geral, mas ao categorizar os contratos da maneira que fez, o projeto corre o risco de trazer para dentro do Código regras protetivas que não caberiam nesse contexto”, avaliou.

Na mesma linha, o doutor em Direito Civil João Pedro de Oliveira de Biazi observou que o projeto altera a forma de resilição unilateral dos contratos, substituindo a “denúncia” prevista no Código atual por “notificação judicial ou extrajudicial”. 

“Parece um jogo de palavras, mas é um tema extremamente relevante para o Direito Civil cotidiano”, disse. Segundo ele, a parte especial da proposta ainda mantém e amplia a possibilidade de denúncia, o que pode gerar contradições.

Risco de judicialização

O professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) Paulo Roque Khouri manifestou preocupação com a criação de novas categorias de revisão contratual, inexistentes no Código Civil atual.

Ele afirmou que as regras sobre repactuação e frustração contratual podem gerar insegurança jurídica.

O artigo 480 prevê que “as partes podem estabelecer que, na hipótese de eventos supervenientes que alterem a base objetiva do contrato, negociarão a sua repactuação”. Já o artigo 480-A determina que o “contrato de execução continuada ou diferida poderá ser resolvido por iniciativa de qualquer uma das partes, quando frustrada a finalidade contratual”.

“Imagine que um casal contrata um pacote turístico de sete dias para passar as férias na praia, mas eles chegam lá e chove torrencialmente todos os dias. Frustrou o fim negocial? Eles vão ter o dinheiro de volta?”, exemplificou Khouri.

Falta de regras claras para fiadores e credores

O professor-adjunto da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) Rinaldo Mouzalas apontou a falta de compatibilização entre a lei atual e o projeto, destacando a ausência de previsibilidade para ações judiciais movidas por fiadores e credores. “Qual ação vai prevalecer, a do fiador ou a do credor? Uma extingue a outra ou serão reunidas?”, questionou. “É algo que precisa ser resolvido no texto.”

Críticas ao modelo de arbitragem

O vice-presidente do Comitê Brasileiro de Arbitragem, Guilherme Nitschke, defendeu que as regras sobre arbitragem incluídas no projeto deveriam ser suprimidas, por entrarem em conflito com a Lei 9.307/1996, que regula o tema no país. Segundo ele, os 13 dispositivos do PL 4/2025 dedicados à arbitragem são prejudiciais e podem gerar contradições com a legislação atual, reconhecida como uma das mais modernas do mundo.

“O projeto retoma o conceito de contrato de compromisso, o que cria uma antinomia grave com a Lei de Arbitragem”, afirmou. Nitschke também criticou a proposta que trata da falta de consenso entre as partes quanto ao preço de um produto. Ele destacou que hoje o artigo 488 do Código Civil prevê que, em caso de divergência sobre o preço, prevalece o termo médio. “O projeto, porém, propõe a judicialização da fixação do preço, sem nenhuma necessidade”, afirmou.

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