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Uma declaração recente do presidente Lula (PT) gerou uma onda de críticas entre médicos legistas do Instituto Médico-Legal (IML) do Rio de Janeiro, que realizaram as necropsias dos 121 corpos de abatidos na operação policial ocorrida nos complexos da Penha e do Alemão, no dia 28 de outubro.
No último dia 4, Lula sugeriu que agentes da Polícia Federal (PF) fiscalizassem o trabalho dos legistas, função que já cabe ao Ministério Público. Na mesma fala, o petista disparou contra as forças de segurança do Rio de Janeiro, resumindo a Operação Contenção a uma “matança”.
Tanto o presidente quanto outros membros do governo passaram a defender a federalização das investigações sobre a operação, que teve como resultado a prisão de 113 membros do Comando Vermelho e a apreensão de 118 armas de fogo e artefatos explosivos (incluindo 91 fuzis) e mais de uma tonelada de entorpecentes.
Apesar de o governador do Rio de Janeiro, Claudio Castro (PL), ter classificado a operação como um sucesso, Lula e membros do alto escalão do governo fizeram duras críticas às forças de segurança, já que durante a ação, foram mortos mais de uma centena de traficantes que, com roupas camufladas e armamento pesado, resistiram aos agentes na área de mata em que houve os confrontos.
Como parte dessa tentativa de federalizar as apurações, Lula disse que o governo estava articulando para que agentes da Polícia Federal participassem das necropsias. “Nós estamos tentando essa investigação. Inclusive estamos tentando ver se é possível os legistas da Polícia Federal participarem do processo de investigação da morte, como é que foi feito, porque tem muitos discursos, tem muita coisa", disse, sugerindo possível parcialidade dos médicos do IML.
Lula também colocou em xeque atuação do Ministério Público
Apesar disso, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) já exerce a fiscalização de todas as necropsias. Constitucionalmente, um dos papéis do Ministério Público é justamente exercer o controle externo da atividade policial. Quando há mortes violentas ou suspeitas, o órgão envia legistas próprios para acompanhar e fiscalizar todos os exames periciais, como aconteceu na força-tarefa para periciar todos os corpos.
Para médicos do IML do Rio de Janeiro ouvidos sob sigilo pela Gazeta do Povo, a declaração de Lula colocou suspeitas em todos os profissionais de medicina forense, tanto do IML quanto do MP-RJ.
“Essa fala nos incomoda em primeiro lugar porque a Polícia Federal não é vigia da Polícia Civil. Cada um tem a sua competência. Diferentemente do Ministério Público, que tem a função constitucional de fiscalizar e acompanhar o trabalho policial, essa não é a função da PF”, questionou um legista.
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Fala de Lula sugere exumação de corpos
A declaração controversa de Lula, de que enviaria legistas federais, aconteceu sete dias após a operação policial. Nessa data, os corpos já haviam passado por perícia e, inclusive, sido enterrados. Na prática, a sugestão do presidente corresponderia a fazer a exumação dos cadáveres para nova necropsia.
Em paralelo, médicos legistas do IML relatam que a Polícia Federal não dispõe de profissionais para essa finalidade. Na PF, o cargo de legista é denominado Perito Criminal Federal na área de Medicina. No entanto, o número desses profissionais é bastante reduzido e concentrado em Brasília. Além disso, os peritos não realizam necropsias rotineiramente, já que essas atribuições cabem aos institutos médicos legais dos estados.
“Quando a Polícia Federal prende alguém no Aeroporto do Galeão por tráfico internacional de drogas, por exemplo, os agentes levam para o IML do Rio de Janeiro para fazer corpo de delito antes de levar ao presídio. Como, então, o governo mandará legistas para acompanhar necropsias se a própria PF não dispõe de profissionais aptos para isso?”, questiona outro legista.
“Isso nos pareceu uma bravata, porque deslegitimou o trabalho técnico de profissionais do IML e do Ministério Público, dando a entender que o governo federal queria tutelar esse trabalho mesmo sem ter pessoas para isso”, prossegue.
Força-tarefa do IML aconteceu em meio a pressões externas
Segundo nota enviada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro, foi montado um esquema especial no IML para a realização das perícias e atendimento às famílias. “A força-tarefa teve início ainda na terça-feira (28/10), dia da operação, e todas as perícias foram realizadas até quinta-feira (30/10)”, diz o comunicado.
“O trabalho foi desenvolvido por peritos oficiais da Polícia Civil e acompanhado por peritos independentes do Ministério Público. Todas as informações constarão nos autos do processo e ficarão disponíveis para todas as partes envolvidas. O trabalho transcorreu normalmente e foi muito bem-sucedido”, finaliza a nota.
Mesmo assim, os dias seguintes à operação foram marcados por uma série de investidas do governo federal, de parlamentares de esquerda e, principalmente, de ONGs que participam da chamada “ADPF das Favelas”, no Supremo Tribunal Federal (STF) – ação que buscava restringir a presença das forças de segurança dentro de comunidades dominadas pelo crime organizado.
O objetivo, novamente, era a criação de uma investigação federal sobre a Operação Contenção, deslegitimando o Ministério Público e a Polícia Civil do estado. A ofensiva dessas organizações foi tamanha que gerou rompimento com o Partido Socialista Brasileiro (PSB), responsável por ajuizar a “ADPF das Favelas” no STF.
Posicionamento da Polícia Federal
A Gazeta do Povo pediu posicionamento à PF sobre o caso e questionou o número de peritos criminais federais aptos a realizar necropsias, mas não houve retorno até o fechamento desta reportagem.