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A decisão tomada na semana passada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o imposto de grandes fortunas – considerando o Congresso “omisso” ao não criar o tributo e obrigando-o a legislar sobre o tema, se não quiser que a própria Corte o faça, como já aconteceu em outros casos – não foi apenas mais um exemplo da juristocracia que tomou conta do país nos últimos anos.
Ela revela muito também sobre o regime woke e socializante que vem se instaurando no Brasil, de forma lenta e gradual, pelas mãos do Supremo. E expõe de forma cristalina, para quem ainda tinha alguma dúvida sobre isso, que a diversidade política e ideológica que caracteriza as democracias liberais, prevista na chamada Constituição Cidadã de 1988, transformou-se realmente numa quimera.
Como mostra a decisão sobre a tributação das grandes fortunas, o ativismo do STF invariavelmente se expressa por meio da imposição de uma agenda considerada “progressista”, alinhada às bandeiras defendidas pelo PT, pelo PSOL e pela esquerda de forma geral – como se ela representasse a vontade majoritária da sociedade. Muitas vezes, porém, o que se observa é a existência de um abismo profundo entre as medidas que o STF procura impor ao país, principalmente na economia e nos costumes, e as ideias e convicções de boa parte dos brasileiros.
Embora o PT, o PSOL e outros partidos identificados claramente com a sinistra, como se diz em italiano, tenham apenas 131 deputados e 18 senadores – e representem só 25% do total de 513 parlamentares da Câmara e 22% dos 81 parlamentares do Senado –, a agenda identitária e socializante que eles defendem vem sendo empurrada goela abaixo da sociedade pelo Judiciário.
A lista de decisões do STF que passaram por cima do Congresso e reforçaram esse perfil woke e socializante é longa e atinge diferentes áreas da vida socioeconômica do país
Os magistrados – ou a maioria deles – parecem acreditar que essa agenda é “virtuosa” e – mais que isso – que eles estão habilitados a definir, entre quatro paredes e à revelia do Congresso, que o país deve cultivá-la e abraçá-la, em linha com a visão do ex-presidente e ex-ministro do STF, Luís Roberto Barroso, de que cabe à instituição promover uma “total recivilização do país”. Mesmo que a percepção de uma parcela considerável da população e do Legislativo – que foi praticamente alijado do processo decisório no “tapetão” – seja bem diferente da de Barroso e de vários de seus ex-colegas do STF sobre o que seria “recivilizar” o Brasil.
“Nós temos de respeitar a decisão política (do Congresso, de pautar ou não a questão)”, afirmou durante o julgamento sobre o imposto de grandes fortunas o ministro Luiz Fux, mais uma vez o único a discordar da decisão do Supremo e a defender o respeito às atribuições constitucionais do Legislativo. “Acho que uma questão muito interessante de se enfrentar no momento oportuno, sobre a qual o Parlamento já vem se debruçando, é essa coisa de o partido que sucumbe na arena política buscar recurso no Poder Judiciário para tentar reverter a decisão dos congressistas.”
A lista de decisões do STF que passaram por cima do Congresso e reforçaram esse perfil woke e socializante é longa e atinge diferentes áreas da vida socioeconômica do país. Além do imposto sobre grandes fortunas, ela inclui, entre outras medidas, a desfiguração da reforma trabalhista aprovada no governo Temer – que flexibilizava as relações de trabalho e impedia a cobrança de taxas compulsórias dos trabalhadores pelos sindicatos –; a suspensão das rescisões unilaterais de planos de saúde, mesmo que previstas em contrato; a suspensão da derrubada do aumento de IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) aprovada pelo Congresso; a proibição do bloqueio de passaporte e carteira de habilitação em caso de não pagamento de dívidas; e até a interferência nos preços cobrados pelos serviços funerários em São Paulo, repassados para a iniciativa privada pela prefeitura em 2023.
Inclui também a proibição de operações policiais em favelas do Rio de Janeiro – suspensa parcialmente em abril de 2025 e ainda não julgada em definitivo pela Corte –; a liberação do porte de 40 gramas de maconha para uso próprio; a equiparação da homofobia e da transfobia ao crime de racismo; a permissão para que transexuais que se identificam com mulheres cumpram pena em presídios femininos; e a possibilidade de conversão de casamentos homoafetivos em casamentos heterossexuais após retificação de gênero de um dos cônjuges. “Hoje o Congresso só serve para carimbar o que o STF decide” – diz o senador Eduardo Girão (Novo-CE), um dos principais críticos da interferência do STF nas atribuições do Legislativo.
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Mesmo o STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem seguido o mesmo caminho woke do STF ao julgar ações identitárias. Recentemente, o STJ decidiu de forma definitiva que simplesmente não existe crime de injúria racial quando a vítima é branca e a ofensa se deveu exclusivamente à cor da pele da vítima – um entendimento oposto ao da Suprema Corte dos Estados Unidos em relação à questão.
No caso da cobrança do imposto sobre grandes fortunas, a decisão do STF ilustra com perfeição como o ativismo da instituição acaba interditando o debate e “demonizando” uma corrente significativa da sociedade que se opõe à cobrança do tributo.
Por mais que o aumento da taxação das grandes fortunas ou dos super-ricos – como prefere dizer o ministro da Fazenda, Fernando Haddad – possa parecer uma medida de “justiça social” que todos deveriam apoiar, muita gente não concorda com a medida, e não apenas os mais endinheirados.
Não porque queira manter o Brasil no topo do ranking dos países com mais desigualdade, nem porque defenda a adoção de um “capitalismo selvagem” no país – mas porque acredita que o caminho que leva à prosperidade geral, à redução da miséria e à melhoria da qualidade de vida da população é outro. É um caminho focado no estímulo ao sucesso dos empreendedores e ao investimento privado, que turbina o crescimento econômico sustentável, gera empregos em profusão e tem efeito direto no aumento da renda e no bem-estar da população.
Como mostra o caso da China e de outros países asiáticos que conseguiram reduzir drasticamente a miséria em apenas duas décadas, a melhoria da renda da população e da qualidade de vida dos mais pobres não depende da redução da desigualdade para acontecer. A China – que é o case de maior sucesso na redução da miséria no mundo – tem nada menos que 516 integrantes na lista de 3.028 bilionários do planeta, publicada pela revista Forbes, que não existiam antes da liberalização econômica do país, quando a igualdade, em tese, era maior.
Mas, desde a abertura da China para a economia de mercado, em 1976, a pobreza extrema caiu de mais de 90% da população para zero, de acordo com o Banco Mundial. E isso sem que o país tenha uma rede de proteção social como a oferecida no Brasil, onde nada menos que 94 milhões de pessoas – o equivalente a 44% da população – são dependentes dos programas de renda do governo, conforme levantamento realizado recentemente pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social.
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Na China, houve também, nesse período, o surgimento de uma classe média robusta, que puxou o consumo de bens e serviços e dinamizou a economia. Segundo o ADB (Banco de Desenvolvimento da Ásia, na sigla em inglês), quase 70% da população fazia parte da classe média em 2015, considerando gastos diários per capita de US$ 3,2 a US$ 32, contra apenas 13% em 1981. Não há dados disponíveis sobre a evolução do indicador de lá para cá. Hoje, no entanto, com a redução da pobreza extrema e o crescimento econômico registrado desde então, tudo indica que esse contingente deve ter aumentado de forma considerável.
O caso da Noruega mostra também que a taxação das grandes fortunas tem um efeito perverso na economia. Lá, a medida levou à saída de US$ 54 bilhões do país, de acordo com um estudo realizado pelo professor Ole Gjems-Onstad, da Escola de Negócios da Noruega. Essa fuga de capitais resultou numa perda estimada em US$ 594 milhões por ano na arrecadação governamental, em vez da receita adicional de US$ 150 milhões que era esperada com a elevação do imposto sobre grandes fortunas, conforme as estimativas oficiais.
É por isso que a proposta que Haddad tenta emplacar a fórceps em qualquer fórum internacional do qual participa – com o apoio entusiasmado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seus aliados – não vai adiante, ainda que, no Brasil, o STF queira agir como “justiceiro social”, acreditando que a taxação dos super-ricos, que o governo petista não consegue emplacar dentro das regras do jogo no Congresso, vá resolver o problema da pobreza e da desigualdade no país.
Se, nas eleições de 2026, o presidente eleito não buscar um caminho alternativo, o regime woke e socializante defendido por Lula e sua tropa de choque – e imposto à sociedade pelo Judiciário, à revelia do Congresso – poderá se tornar irreversível.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos
