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O mundo atravessa uma das mais intensas reconfigurações geopolíticas desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Uma transformação silenciosa, porém profunda. A era da geoeconomia substitui, com brutal rapidez, a era do comércio “despolitizado”. A promessa de uma globalização integrada, marcada por cadeias produtivas dispersas e interdependência econômica, cede lugar a um ambiente de competição estratégica, protecionismo e realinhamento de poder e de alianças. A era da ingenuidade multilateral e liberal acabou. A política industrial voltou. O Estado voltou. A ver se tal retorno é para melhor ou para pior.
A ação dos Estados nacionais na reorganização das cadeias produtivas busca reinserir o fator do trabalho humano na produção. Não pretendo, aqui, prever em que medida essa empreitada será exitosa, particularmente quando levamos em conta que o modelo econômico que se desenha será um intensivo em energia, inteligência e eficiência, três variáveis essenciais que podem, desde uma perspectiva contábil, colocar o elemento humano em uma função acessória. É isso que a política econômica e industrial do atual governo dos Estados Unidos busca equacionar.
Nesse cenário, tarifas, subsídios, sanções, restrições tecnológicas e manipulação de cadeias de suprimento deixaram de ser instrumentos técnicos e passaram a ser armas de Estado. EUA, China, União Europeia, Japão, Índia e Reino Unido reorganizam suas estratégias externas a partir de um princípio básico: segurança nacional, autonomia e capacidade industrial vêm antes de mercados. Nesse ambiente, não há espaço para romantismos diplomáticos — mas é exatamente a isso que a política externa de Lula se agarra.
O governo Lula não apenas falha em compreender a natureza dessas mudanças, como reage a elas de forma errática e ideologizada. Em vez de reposicionar o país para capturar oportunidades, refugia-se em agendas simbólicas, discursos anacrônicos e alianças políticas que pouco fazem para elevar o peso do Brasil nas cadeias globais do futuro. Lula e seus acólitos não têm interesse em adequar a situação do Brasil a um contexto no qual o valor do trabalho humano está sendo reavaliado: a ele e a seu grupo interessa manter ineficiente o produto desse trabalho, a fim de dele extrair tanto quanto possível. O PT e o esquerdismo são sanguessugas que buscam primariamente subtrair, jamais aperfeiçoar.
A geoeconomia como nova gramática do poder — e o Brasil preso ao velho dicionário
A reconfiguração da ordem internacional deixou de ser um prognóstico acadêmico para se tornar um fato mensurável em números, acordos bilaterais e deslocamentos estratégicos visíveis. Em poucos anos, o sistema internacional caminhou de um ambiente dominado pela globalização econômica para um cenário marcado por competição tecnológica, regionalização produtiva e disputas por cadeias críticas, de semicondutores a minerais estratégicos.
A competição global não é mais feita por acordos multilaterais e consensos diplomáticos, os quais de resto só prevaleceram por falta de liderança. Hoje, o que define o peso de um país é sua capacidade de atrair indústrias estratégicas com subsídios e incentivos; proteger sua base tecnológica com controles de exportação e mecanismos de triagem de investimentos; condicionar acesso ao mercado interno a transferência de tecnologia e conteúdo local; usar tarifas e sanções como forma de coerção; manipular cadeias globais de suprimento para garantir autonomia em setores críticos e controlar recursos naturais essenciais (minérios de transição, terras raras, energia, alimentos). Não estou fazendo um juízo de valor, e sim uma constatação de fatos.
Nesse novo tabuleiro, geopolítica e geoeconomia voltaram a ser quase indissociáveis. E é justamente nesse momento que a política externa brasileira, em vez de reposicionar o país com pragmatismo, parece insistir em uma leitura ideológica, lenta e desalinhada das transformações em curso.
Bem-vindo à era da geoeconomia, em que política comercial, política industrial e política externa deixam de ser arenas separadas e passam a formar uma única engrenagem. Todos os principais atores globais já entenderam isso. Todos, menos o Brasil. E não por falta de recursos ou posição estratégica, mas por deficiência doutrinária: a política externa do governo Lula simplesmente não compreendeu o novo desenho do poder global. Se o leitor compreender o enquadramento intelectual de Celso Amorim e seus asseclas, atados ao ideário de substituição de importações centrado na indústria pesada intensiva em mão-de-obra, certamente deduzirá que, na cabeça de tais pessoas, o Brasil deve retomar o modelo econômico-industrial semi-autárquico que soçobrou no início da década de 1980, uma proposta absurda. E, ao não compreender como as cadeias produtivas globais têm sido reorganizadas, o País tomou o pior caminho possível, o da irrelevância crescente.
Essa mudança de paradigma tornou-se evidente quando as principais potências passaram a tratar comércio internacional, cooperação tecnológica e investimentos estrangeiros não como transações econômicas neutras, mas como instrumentos de poder. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lógica do livre mercado foi substituída por uma política industrial robusta e explícita: Washington agora subsidia setores estratégicos, impõe barreiras tecnológicas à China e impõe requisitos de conteúdo local para semicondutores, energia renovável e veículos elétricos. Ao Brasil corresponde observar essa mudança de padrões ativos e posicionar-se adequadamente, por meio de uma estratégia que contemple perspectivas de curto, médio e longo prazo. No atual governo, contudo, tudo é para amanhã, inclusive as estatísticas do IBGE, que constroem uma narrativa macroeconômica falsa a fim de viabilizar a reeleição de Lula em 2026.
Os números comprovam o tamanho do terremoto. Nos últimos quatro anos, os EUA aprovaram pacotes econômicos que somam mais de US$ 1,2 trilhão — incluindo o CHIPS Act (US$ 52,7 bilhões), o Inflation Reduction Act (US$ 369 bilhões) e o Infrastructure Investment and Jobs Act (US$ 550 bilhões) — para atrair fábricas, impulsionar semicondutores, dominar tecnologias limpas e reduzir dependência estratégica da China. O CHIPS Act foi concebido não para baratear produtos, mas para garantir que os EUA nunca mais fiquem vulneráveis ao fornecimento asiático de tecnologias sensíveis.
A China opera sob lógica semelhante, porém invertida e mais profunda. Desde o plano “Made in China 2025”, Pequim busca dominar cadeias críticas, reduzir dependência tecnológica do Ocidente e transformar suas exportações em ferramentas geopolíticas. Assim, expandiu seus incentivos industriais, elevando o crédito direcionado e intensificando os investimentos de suas gigantes estatais em setores-chave como energia renovável, veículos elétricos e inteligência artificial.
Apenas em 2023, o governo chinês investiu US$ 140 bilhões em subsídios industriais diretos, mais do que todos os países da OCDE juntos. O país já domina 80% da cadeia global de baterias, 60% de painéis solares e controla, direta ou indiretamente, 90% das terras raras do planeta. Isso não é um acidente de mercado, mas resultado de planejamento estatal, crédito direcionado e um ecossistema de poder que transforma competitividade industrial em instrumento de projeção global.
A União Europeia, por sua vez, abandonou a ingenuidade comercial dos anos 1990 e 2000. Bruxelas agora fala claramente em “soberania estratégica aberta”, uma fórmula elegante para justificar subsídios, proteção industrial e investigações contra produtos chineses subsidiados, em especial veículos elétricos. O bloco compreendeu que sua competitividade está diretamente ligada à capacidade de atrair indústrias e preservar know-how tecnológico. Não por acaso, a UE flexibilizou regras de ajuda estatal, algo impensável antes de 2018, e respondeu com seu próprio pacote trilionário do Green Deal Industrial Plan, flexibilizando regras de subsídios e correndo contra o tempo para não perder indústrias inteiras para o território americano.
O Japão, veterano na arte do planejamento econômico, retomou políticas industriais agressivas, ampliando incentivos para semicondutores e reativando parcerias estratégicas com EUA e Europa. Após décadas de deflação e estagnação, Tóquio reorganiza sua diplomacia econômica para, ademais de retardar o inevitável declínio econômico japonês decorrente de uma situação demográfica aparentemente sem saída, blindar cadeias de suprimentos em defesa, microchips e energia, inclusive com novos acordos para garantir suprimento de minerais críticos na Ásia-Pacífico.
A Índia segue talvez o caminho mais emblemático entre os emergentes. Com os programas “Make in India” e “Production-Linked Incentives”, o governo Modi atraiu gigantes globais e transformou o país no destino preferencial de fábricas que deixam a China. Com apoio americano, atraiu US$ 30 bilhões da Apple desde 2022, tornando-se o novo polo de montagem global do iPhone. Nova Délhi percebeu que segurança nacional e competitividade industrial caminham juntas: reduzir dependência externa, expandir defesa, manufatura avançada e semicondutores tornou-se prioridade diplomática. É também por isso que a Índia se aproxima de EUA, Japão e Europa, ao mesmo tempo em que mantém autonomia estratégica. Com vistas, ademais, a sopesar a influência econômica e geopolítica da China na Ásia.
Enquanto isso, países de porte intermediário entenderam a oportunidade histórica: Índia, México, Polônia, Indonésia e Vietnã tornaram-se destinos preferenciais para a realocação de fábricas que deixam a China. O México superou a China como maior exportador para os EUA. O Vietnã viu suas exportações de produtos de alta tecnologia crescerem 27 vezes em 15 anos.
Em todos esses casos, a lógica é a mesma: mercados só existem enquanto sustentarem a segurança nacional, a autonomia tecnológica e a capacidade industrial de cada país. A política externa tornou-se uma extensão da política industrial; tratados comerciais passaram a ser instrumentos de competição e não de integração romântica; e cadeias de suprimento deixaram de ser decisões puramente econômicas, tornando-se escolhas estratégicas de Estado.
Essa é a disputa deste século já em vias de concluir seu primeiro quarto. É nesse cenário que todas as diplomacias sérias estão operando. E o Brasil? Segue operando com reflexos dos anos 1990, quando a regra era abertura, previsibilidade e multilateralismo, com notas desconexas de um arremedo de política industrial baseado em ideias de substituição de importações que remontam ao período imediatamente posterior à II Guerra Mundial. Essa lógica simplesmente não existe mais, e insistir nela é perder vantagem em um tabuleiro redesenhado. Sob o governo Lula, a política externa se mostra reativa, anacrônica e ideologicamente orientada, incapaz de transformar as oportunidades do novo cenário em ganhos concretos para a economia, a indústria e a segurança nacional.
Os três erros de Lula
A política externa do governo Lula insiste em três erros fundamentais, que poderiam ser resumidos como ingenuidade, nostalgia e visão estratégica equivocada. O primeiro erro é confundir discurso de “Sul Global” com estratégia de poder, tratando eventuais competidores estratégicos como “amigos ideológicos”. O Brasil segue repetindo mantras de cooperação, multipolaridade e solidariedade entre países em desenvolvimento, enquanto os demais “não-alinhados” negociam ferozmente vantagens industriais. Enquanto Índia, Indonésia, Turquia, Arábia Saudita e Emirados Árabes usam o Sul Global como plataforma de barganha, o Brasil usa-o como palco de retórica, para a diplomacia da foto.
O segundo erro é subordinar relações internacionais a afinidades ideológicas. A insistência em aproximar-se politicamente de regimes autoritários e governos “amigos” prejudicou relações fundamentais com EUA e Europa. Tarifas, tensões comerciais, dificuldades regulatórias e desconfiança climática foram consequências diretas dessa diplomacia emocional.
O terceiro erro consiste na subscrição de uma doutrina geoeconômica anacrônica, que não corresponde a uma era na qual a disponibilidade de energia abundante e de baixo custo é fundamental para o reposicionamento dos Estados nacionais na ordem global ora em conformação. Ações ad hoc, muitas vezes incoerentes e contraditórias entre si, são adotadas porque o Itamaraty não conversa com a Fazenda, que não conversa com a Indústria, que não conversa com Minas e Energia, que não conversa com o Meio Ambiente, que não conversa com a Defesa, que não conversa com o Planalto, que não conversa com ninguém. Enquanto EUA e China operam com planejamento integrado, conectando diplomacia com indústria, tecnologia, geração de energia e segurança nacional, o Brasil opera por fragmentos.
O que o Brasil precisa é exatamente o oposto: realismo propositivo, como Índia e Turquia; pragmatismo material, como México e Indonésia; ambição industrial, como EUA, China e UE; articulação multivetorial, como Arábia Saudita e Emirados Árabes. O país tem os ativos, os recursos, o tamanho. O que falta é o essencial, visão estratégica.
Realinhamento global: o mundo se move em blocos – e o Brasil ficou no limbo
São discerníveis, hoje, três grandes arranjos estratégicos O bloco tecnocrático liderado pelos EUA, com alinhamento tecnológico e militar com UE, Japão, Coreia do Sul e Austrália, e que controla normas digitais, regula Inteligência Artificial e direciona o futuro da indústria tecnológica; O bloco sino-centrado, que inclui China, Rússia, Irã e outros parceiros que operam por meio de financiamento de infraestrutura, acordos energéticos e comércio em moedas locais; e as potências intermediárias — o espaço onde o Brasil deveria estar, preservando sua autonomia estratégica. Arábia Saudita, Emirados Árabes, Turquia, Índia e Indonésia compreendem como lucrar com a disputa entre superpotências. Diversificam alianças, extraem concessões e constroem influência regional.
O Brasil, por escolha política, não pertence a nenhum dos três blocos. É o pior dos mundos: não tem proteção dos EUA, nem vantagens industriais da China, nem a autonomia estratégica dos intermediários. Enquanto países emergentes ajustam suas diplomacias para capturar oportunidades desse realinhamento, o governo Lula insiste em priorizar agendas políticas e simbólicas, como o alinhamento automático ao eixo do “Sul Global”, ao qual os demais integrantes prestam observância puramente formal, em detrimento de estratégias objetivas de inserção econômica. A retórica contra o que chama de "polarização geopolítica" não tem sido acompanhada por ações que protejam os interesses nacionais diante dela. O resultado é um país que assiste às grandes negociações globais à distância, enquanto seus concorrentes ampliam sua relevância nas novas cadeias industriais.
O caso das relações com a China é emblemático. Trata-se do maior parceiro comercial do Brasil, destino de quase 35% das exportações brasileiras, mas concentradas principalmente em commodities de baixo valor agregado, que já ensejam um cenário de extrema dependência dos setores exportadores brasileiros em relação a Pequim. Em vez de negociar acesso a setores de tecnologia, acordos de coprodução industrial ou participação brasileira em cadeias de semicondutores, como fazem Vietnã, Malásia e Índia, o governo se limita a reforçar uma relação assimétrica, baseada em dependência de soja, minério, petróleo e promessas vagas.
O país continua exportando produtos primários enquanto importa máquinas, inteligência e valor. A política externa brasileira deveria estar lutando por inserir o país nas cadeias tecnológicas chinesas, e não reforçando uma relação de dependência primária que só interessa a quem se conforma com um papel subalterno no capitalismo global.
No plano energético, a contradição é ainda mais evidente. O mundo vive uma disputa feroz por minerais críticos, que incluirá lítio, terras raras e níquel. A Argentina, por exemplo, já atraiu mais de US$ 10 bilhões em investimentos para o triângulo do lítio. O Brasil, que possui reservas estratégicas e poderia liderar esse segmento, continua preso entre burocracia, insegurança regulatória e discursos ideológicos sobre “soberania” e pseudo-protagonismo ambiental, que prejudicam os interesses nacionais e, na prática, perfazem uma abdicação de soberania e espantam investidores de longo prazo. O país observa, inerte, uma corrida global em que poderia ser protagonista. Enquanto o mundo corre, o Brasil caminha. E lentamente.
Essa paralisia estratégica também aparece na relação com os Estados Unidos e União Europeia. No momento em que Washington amplia acordos de cooperação tecnológica com economias emergentes, inclusive em energia limpa, defesa e semicondutores, o Brasil opta por uma postura ambígua que enfraquece sua capacidade de negociação.
O Brasil poderia se beneficiar enormemente do friendshoring e do movimento ocidental de diversificar suas cadeias produtivas. No entanto, a diplomacia do atual governo adota uma postura desconfiada e invariavelmente improdutiva e agressiva em relação aos EUA, ao mesmo tempo em que demonstra absoluta complacência com interesses chineses, quando não subserviência.
Com a Europa, a situação é igualmente problemática. O governo Lula praticamente implodiu o acordo Mercosul–UE, já frágil, ao reacender discursos ideológicos e inviabilizar concessões mínimas que permitiriam destravar negociações. Enquanto isso, o México assinou 50 acordos de livre comércio. O Vietnã possui 16. O Chile, 33. O Mercosul tem apenas quatro. E segue fechado, envelhecido e introspectivo. Diplomacia não é tribuna ideológica. É cálculo. É interesse. É proteção da economia nacional. E nisso, o atual governo falha reiteradamente e miseravelmente.
A nova ordem geoeconômica não espera. Cadeias produtivas estão se realocando agora. A disputa por semicondutores, lítio, energia limpa, IA, geração energética, competitividade industrial e defesa está sendo decidida agora. Os países que capturarem investimentos, tecnologia e influência nos próximos cinco a sete anos definirão sua posição nas próximas décadas.
A diplomacia brasileira precisa de uma guinada: menos nostalgia, mais estratégia; menos discurso, mais negociação; menos alinhamento emocional e “vontade de ser aceita”, mais realismo; menos voluntarismo político, mais geoeconomia.
Se continuar preso a discursos vazios sobre “Sul Global”, “neutralidade ativa”, “multipolaridade romântica” e “racismo ambiental”, o Brasil corre o risco real de se tornar um ator irrelevante — um país rico em recursos, mas pobre em ambição; grande em território, pequeno em estratégia; enorme em potencial, minúsculo em visão. O mundo está reescrevendo seu futuro, e o Brasil, sob a política externa de Lula, sequer sabe segurar uma caneta.
Marcos Degaut é doutor em Segurança Internacional, pesquisador sênior na University of Central Florida (EUA), ex-secretário especial adjunto de Assuntos Estratégicos da Presidência da República e ex-secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa.